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segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O des(re)conhecimento e o processo de transformação

Resolvi postar as belas palavras de Pablo Neruda em "O menino perdido" pois contempla muito bem a proposição do que venho perseguindo, que é a compreensão do ser humano em suas mais vastas relações. Mesmo que os indivíduos não fiquem a pensar em suas trajetórias e em seu constante processo de mutabilidade, não quer dizer que seguem seus caminhos de maneira estática. Cada ato, cada gesto promove sensações e vivências que, ao serem colocadas em reflexão, corroboram com o que denominamos vida. Um conjunto de comportamentos e práticas culturais que fazem os seres serem aquilo que são. Uma questão a ser colocada é que, desde que nascemos, não ficamos pensando em nossas ações: simplesmente fazemos. Fazemos porque grande parte do que precisamos realizar já está estruturado na sociedade. Não questionamos, simplesmente fazemos. Grande parte da sociedade cresce e continua a fazer aquilo que todos fazem, ou almejam fazer e realizar...Os padrões sociais estão tão bem construídos que o gosto estético e os comportamentos moldulam-se como um processo naturalizado, ou seja, há uma homologia entre o que os meios socializadores (escola, igreja, família, televisão, internet, jornais etc) produzem e o que os indivíduos incorporam. E é aí que reside a crença social: as inconsciências criadas pela coletividade. Isso porque a dominação não perpassa somente pelo viés econômico, mas também pelas relações afetivas, religiosas, culturais, sociais etc que não deixam de ser dominações simbólicas, pois geralmente são coercitivas de maneira oculta, imperceptíveis. Contudo, muitos agentes sociais não percebem tal relação de dominação, pois o indivíduo vê a sociedade e suas relações a partir de seu posicionamento nela, ou seja, a partir de suas disposições culturais e sociais e limitações dentro de determinada realidade. Por fim, apesar de Pablo Neruda retratar em seu poema que o menino não se reconhece mais, há aí uma estreita relação a ser pensada que se remete ao fato de que, embora muitas vezes não nos reconhecemos devido ao nosso processo de transformação, não podemos descartar que tudo aquilo que vivemos desde a mais tenra idade contribui para nos tornar o que somos, mesmo que seja um processo demorado, incompreensível e que nos leve ao não reconhecimento.

O menino perdido



Lenta infância de onde
como de um pasto comprido
cresce o duro pistilo,
a madeira do homem.
Quem fui? O que fui? O que fomos?
Não há resposta. Passamos.
Não fomos. Éramos. Outros pés,
outras mãos, outros olhos.
Tudo foi mudando folha por folha,
na árvore. E em ti? Mudou a tua pele,
o teu cabelo, a tua memória. Aquele que não foste.
Aquele foi um menino que passou correndo
atrás de um rio, de uma bicicleta,
e com o movimento
foi-se a tua vida com aquele minuto.
A falsa identidade seguiu os teus passos.
Dia a dia as horas se amarraram,
mas tu já não foste, veio o outro,
o outro tu, e o outro até que foste,
até que te arrancaste
do próprio passageiro,
do trem, dos vagões da vida,
da substituição, do caminhante.
A máscara do menino foi mudando,
emagreceu a sua condição enfermiça,
aquietou-se o seu volúvel poderio:
o esqueleto se manteve firme,
a construção do osso se manteve,
o sorriso,
o passo, o gesto voador, o eco
daquele menino nu
que saiu de um relâmpago,
mas foi o crescimento como um traje!
Era outro o homem e o levou emprestado.
Assim aconteceu comigo.
De silveste
cheguei a cidade, a gás, a rostos cruéis
que mediram a minha luz e a minha estatura,
cheguei a mulheres que em mim se procuraram
como se a mim tivessem perdido,
e assim foi sucedendo
o homem impuro,
filho do filho puro,
até que nada foi como tinha sido,
e de repente apareceu no meu rosto
um rosto de estrangeiro
e era também eu mesmo:
era eu que crescia,
era tu que crescias,
era tudo,
e mudamos
e nunca mais soubemos quem éramos,
e às vezes recordamos
aquele que viveu em nós
e lhe pedimos algo, talvez que se recorde de nós,
que saiba pelo menos que fomos ele, que falamos
com a sua língua,
mas das horas consumidas
aquele nos olha e não nos reconhece.

Pablo Neruda

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