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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

O preconceito contra o analfabeto

Para muitos, os seres desprovidos de alfabetização e escolarização denominados de analfabetos não possuem cultura. Comumente é possível escutar alguém chamá-los de ignorantes. É como se este grupo social, que por uma série de fatores não puderam frequentar a escola, fossem despossuídos de cultura. Isso porque, delega-se que a escola, e somente ela, forma o ser humano no sentido cultural. E aquele que não percorreu tal caminho é considerado inferior aos demais participantes desta instituição social. Desse modo, criou-se um preconceito contra o analfabeto no Brasil e, utilizando o referencial de Ana Maria Galvão e Maria Clara de Pierro (2007), serão mostradas algumas “cenas” referentes à construção social do preconceito contra o analfabeto no país.

As autoras descrevem “em cenas” alguns momentos históricos que contribuíram para o processo de construção do preconceito contra o analfabeto no país.

CENA 1: A primeira cena, dentre as oito expostas, refere-se ao período de catequização dos negros e índios pelos jesuítas no século XVII. Nessa situação, as crianças eram o alvo da alfabetização, uma vez que por meio delas se formariam gerações católicas e propagariam seus ideais aos adultos pertencentes a esses grupos.

CENA 2: Já nesta cena, o período se remete aos séculos XVIII – XIX, quando grandes proprietários de terra pertenciam a uma elite (rural) e que não havia a necessidade da alfabetização para o exercício do poder, uma vez que a oralidade era ainda o meio mais propagado de comunicação, já que a impressão de escritos era rara no país e se concentrava em núcleos urbanos, o que não ocorria com a maioria da população que ainda se concentrava mais em áreas rurais.

CENA 3: “Civilização” das camadas populares. Esse momento pertence ao século XIX e aqui o ponto central é o ensino da leitura e escrita destinadas aos adultos por meio da Constituição do Império, algumas leis e Código Criminal, com o intuito de “civilizar” essas pessoas.

Outro fator diz respeito aos professores que agiam como voluntários, ou seja, não ganhavam nada a mais por ensinar adultos, já que sua remuneração se pautava pelo ensino dedicado às crianças. Isso mostra que a alfabetização de adultos já estava ligada ao caráter de solidariedade e caridade.

CENA 4: Educação como polidez. Conforme os anos foram se passando, ainda no século XIX, a necessidade de leitura e escrita começa a se tornar mais necessária e valorizada e, assim, a educação passa a ser vinculada com polidez.

Dentre as práticas que tornou necessário o uso da leitura e escrita está a questão do voto que, com a Lei Saraiva (1881), estabelecia “pela primeira vez a exclusão do analfabeto entre os eleitores” (GALVÃO; PIERRO, 2007, p.5).

CENA 5: O analfabetismo. Início do século XX, sob os moldes da República, os dados acerca do analfabetismo no Brasil assustavam: os analfabetos representavam 80% da população.

Intitulada “vergonha nacional”, foram iniciadas muitas mobilizações de combate ao analfabetismo, como formas de acabar com essa “praga”.

Isso mesmo! O analfabetismo era visto como um mal, associado a muitos fatores negativos e até mesmo comparado a uma doença.

CENA 6: Campanhas de alfabetização de adultos. As autoras comentam a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA) promovido pelo Ministério de Educação e Saúde nas décadas de 1950 e 1960. O ponto principal deste momento é o pensamento das pessoas envolvidas na campanha – no caso uma professora e um dirigente (Lourenço Filho) – que expuseram o analfabeto como seres inferiores aos outros. Nas palavras da professora, o analfabeto é como “uma espécie de zero cujo valor só se pode revelar quando à direita dos que sabem ler” (GALVÃO; PIERRO, 2007, p.9).

CENA 7: O analfabeto como portador de cultura. Essa cena se centra na década de 1960 e versa sobre as experiências iniciadas e inspiradas por Paulo Freire na alfabetização de adultos nesse determinado período histórico.

Para Freire, os analfabetos são portadores de cultura: a cultura do “mundo”, das suas experiências e vivências, e é a partir delas que o processo de alfabetização deve se iniciar.

CENA 8: Discursos contemporâneos sobre o analfabeto. A última cena discorre sobre a década de 1970 e particularmente sobre o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) que, convém lembrar, surgiu no período em que o país vivia uma ditadura. Diante disso, os moldes do regime autoritário se refletiram nos processos de ensino de leitura e escrita, inclusive no programa acima citado.

Com o fim da ditadura e a extinção do Mobral, surgem outros programas de alfabetização, como os programas Alfabetização Solidária e o Brasil Alfabetizado que, embora tenha mudado o foco de interesses dos programas (devido à mudança do regime), a visão sobre a educação de adultos permaneceu vinculada ao pensamento voluntário e de solidariedade.

Apesar das conquistas de direito ao voto e o direito dos jovens e adultos ao Ensino Fundamental público e gratuito com a Constituição de 1988, a ideia de erradicar o mal social permaneceu no ideário dos governantes, que criaram os programas de alfabetização de jovens e adultos com esse intuito.

Enfim, as autoras finalizam o percurso concluindo que o preconceito contra o analfabeto é relativo, ou seja, “o estigma contra o analfabeto não é universal, mas relativo ao poder da cultura escrita em tempos, grupos sociais e sociedades historicamente determinadas” (GALVÃO; PIERRO, 2007, p.16).

Um fator interessante concerne ao fato de que, embora o preconceito seja relativo, foi delineado historicamente no Brasil em um longo processo em que cada vez mais o uso da leitura e da escrita foram se tornando necessárias e, com isso, mais acirradamente a educação foi sendo utilizada como um meio de distinção social.

Desse modo, a construção do preconceito do analfabeto no Brasil foi tomando diversas formas, conforme os interesses de determinadas épocas, até chegar ao ponto em que o conhecemos atualmente. A partir disso, podemos constatar que o que foi feito em prol dessas pessoas, historicamente, também dependeu dos interesses em voga nesses diversos momentos históricos, como, por exemplo, erradicar índices altíssimos de um mal que envergonhava o país.

Assim, configurou-se a longa jornada dos analfabetos no Brasil e a construção do preconceito diante dessas pessoas que, por não terem tido oportunidades iguais de educação, ainda são culpadas pelo atraso e vergonha nacional.

Esperemos que, mais adiante, a partir da continuidade histórica e com novas construções sociais, outras “cenas” dos analfabetos possam ser descritas, desta vez não pondo em negatividade os analfabetos, mas o combate ao seu preconceito.

GALVÃO, A.M.; PIERRO, M.C.D. O preconceito contra o analfabeto. São Paulo, Cortez, 2007, Coleção Preconceitos, vol.2. p. 31-54.

Um comentário:

  1. Muito bom este texto! Estou estudando essa questão de preconceito contra o analfabeto e me ajudou muito em algumas questões!

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