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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Como erradicar o analfabetismo sem erradicar os analfabetos?

Munir Fasheh é diretor do Fórum Árabe de Educação da Universidade de Harvard, Cambridge, onde suas responsabilidades incluem a organização de reuniões anuais para as pessoas do mundo árabe a trabalhar em vários campos. Foi fundador e diretor do Instituto Tamer para a Educação Comunitária, em Jerusalém, Israel, cujo objetivo era criar espaços de aprendizagem, especialmente para os jovens, através de atividades, projetos e seminários. Fasheh é membro do Conselho de Administração da Escola de Economia de Jerusalém e da diplomacia e do Conselho de Curadores e da Comissão de Coordenação para o recurso Árabes Coletivo, um grupo inter-árabes trabalhando em rede e comunicação entre as ONGs árabes.


Fui treinado para ver as coisas com base na linguagem oficial e nas categorias profissionais. Em um sentido profundamente verdadeiro, descobri que minha mãe era analfabeta em relação ao meu tipo de conhecimento, mas que eu era analfabeto em face do seu tipo de compreensão e conhecimento. Assim, descrevê-la como analfabeta e considerar-me como alfabetizado, em certo sentido absoluto, reflete uma compreensão estreita e enviesada do mundo real e da realidade. Sou analfabeto entre os povos indígenas do equador; um grego é analfabeto no Paquistão etc. (FASHEH, 2004, p. 160)



[...] sinto que minha mãe “analfabeta” era mais livre do que eu. Ela trilhou seu caminho na vida ao palmilhá-lo, e não por meio de treinamento nem pelo ensino de conhecimento fragmentado, isolado da vida. Ela aprendeu, em vez de ser ensinada. Aprendeu observando, fazendo, refletindo, contando e produzindo. Criou seu próprio caminho e construiu sua compreensão. Uma grande diferença entre nós era que, quando eu precisava descobrir o significado de uma palavra, deveria procurá-la, na enciclopédia ou em algum outro livro. Ela, ao contrário, procurava os significados com base na sua experiência de vida. A minha forma de busca era mais cômoda. Raramente me esforçava para explorar a importância de refletir sobre minha experiência com a palavra; não fazia qualquer investigação independente do significado. Mas ela criava sua própria compreensão; era uma espectadora, uma construtora, uma autora da realidade. (FASHEH, 2004, p. 161-2)


FASHEH, M. Como erradicar o analfabetismo sem erradicar os analfabetos? Tradutor: Timothy Ireland. Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro, n. 26, p. 157-168, maio/ago. 2004.

www.anped.org.br/rbe/.../rbde26_14_espaco_aberto_-_munir_fasheh.pdf.


O preconceito contra o analfabeto

Para muitos, os seres desprovidos de alfabetização e escolarização denominados de analfabetos não possuem cultura. Comumente é possível escutar alguém chamá-los de ignorantes. É como se este grupo social, que por uma série de fatores não puderam frequentar a escola, fossem despossuídos de cultura. Isso porque, delega-se que a escola, e somente ela, forma o ser humano no sentido cultural. E aquele que não percorreu tal caminho é considerado inferior aos demais participantes desta instituição social. Desse modo, criou-se um preconceito contra o analfabeto no Brasil e, utilizando o referencial de Ana Maria Galvão e Maria Clara de Pierro (2007), serão mostradas algumas “cenas” referentes à construção social do preconceito contra o analfabeto no país.

As autoras descrevem “em cenas” alguns momentos históricos que contribuíram para o processo de construção do preconceito contra o analfabeto no país.

CENA 1: A primeira cena, dentre as oito expostas, refere-se ao período de catequização dos negros e índios pelos jesuítas no século XVII. Nessa situação, as crianças eram o alvo da alfabetização, uma vez que por meio delas se formariam gerações católicas e propagariam seus ideais aos adultos pertencentes a esses grupos.

CENA 2: Já nesta cena, o período se remete aos séculos XVIII – XIX, quando grandes proprietários de terra pertenciam a uma elite (rural) e que não havia a necessidade da alfabetização para o exercício do poder, uma vez que a oralidade era ainda o meio mais propagado de comunicação, já que a impressão de escritos era rara no país e se concentrava em núcleos urbanos, o que não ocorria com a maioria da população que ainda se concentrava mais em áreas rurais.

CENA 3: “Civilização” das camadas populares. Esse momento pertence ao século XIX e aqui o ponto central é o ensino da leitura e escrita destinadas aos adultos por meio da Constituição do Império, algumas leis e Código Criminal, com o intuito de “civilizar” essas pessoas.

Outro fator diz respeito aos professores que agiam como voluntários, ou seja, não ganhavam nada a mais por ensinar adultos, já que sua remuneração se pautava pelo ensino dedicado às crianças. Isso mostra que a alfabetização de adultos já estava ligada ao caráter de solidariedade e caridade.

CENA 4: Educação como polidez. Conforme os anos foram se passando, ainda no século XIX, a necessidade de leitura e escrita começa a se tornar mais necessária e valorizada e, assim, a educação passa a ser vinculada com polidez.

Dentre as práticas que tornou necessário o uso da leitura e escrita está a questão do voto que, com a Lei Saraiva (1881), estabelecia “pela primeira vez a exclusão do analfabeto entre os eleitores” (GALVÃO; PIERRO, 2007, p.5).

CENA 5: O analfabetismo. Início do século XX, sob os moldes da República, os dados acerca do analfabetismo no Brasil assustavam: os analfabetos representavam 80% da população.

Intitulada “vergonha nacional”, foram iniciadas muitas mobilizações de combate ao analfabetismo, como formas de acabar com essa “praga”.

Isso mesmo! O analfabetismo era visto como um mal, associado a muitos fatores negativos e até mesmo comparado a uma doença.

CENA 6: Campanhas de alfabetização de adultos. As autoras comentam a Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA) promovido pelo Ministério de Educação e Saúde nas décadas de 1950 e 1960. O ponto principal deste momento é o pensamento das pessoas envolvidas na campanha – no caso uma professora e um dirigente (Lourenço Filho) – que expuseram o analfabeto como seres inferiores aos outros. Nas palavras da professora, o analfabeto é como “uma espécie de zero cujo valor só se pode revelar quando à direita dos que sabem ler” (GALVÃO; PIERRO, 2007, p.9).

CENA 7: O analfabeto como portador de cultura. Essa cena se centra na década de 1960 e versa sobre as experiências iniciadas e inspiradas por Paulo Freire na alfabetização de adultos nesse determinado período histórico.

Para Freire, os analfabetos são portadores de cultura: a cultura do “mundo”, das suas experiências e vivências, e é a partir delas que o processo de alfabetização deve se iniciar.

CENA 8: Discursos contemporâneos sobre o analfabeto. A última cena discorre sobre a década de 1970 e particularmente sobre o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) que, convém lembrar, surgiu no período em que o país vivia uma ditadura. Diante disso, os moldes do regime autoritário se refletiram nos processos de ensino de leitura e escrita, inclusive no programa acima citado.

Com o fim da ditadura e a extinção do Mobral, surgem outros programas de alfabetização, como os programas Alfabetização Solidária e o Brasil Alfabetizado que, embora tenha mudado o foco de interesses dos programas (devido à mudança do regime), a visão sobre a educação de adultos permaneceu vinculada ao pensamento voluntário e de solidariedade.

Apesar das conquistas de direito ao voto e o direito dos jovens e adultos ao Ensino Fundamental público e gratuito com a Constituição de 1988, a ideia de erradicar o mal social permaneceu no ideário dos governantes, que criaram os programas de alfabetização de jovens e adultos com esse intuito.

Enfim, as autoras finalizam o percurso concluindo que o preconceito contra o analfabeto é relativo, ou seja, “o estigma contra o analfabeto não é universal, mas relativo ao poder da cultura escrita em tempos, grupos sociais e sociedades historicamente determinadas” (GALVÃO; PIERRO, 2007, p.16).

Um fator interessante concerne ao fato de que, embora o preconceito seja relativo, foi delineado historicamente no Brasil em um longo processo em que cada vez mais o uso da leitura e da escrita foram se tornando necessárias e, com isso, mais acirradamente a educação foi sendo utilizada como um meio de distinção social.

Desse modo, a construção do preconceito do analfabeto no Brasil foi tomando diversas formas, conforme os interesses de determinadas épocas, até chegar ao ponto em que o conhecemos atualmente. A partir disso, podemos constatar que o que foi feito em prol dessas pessoas, historicamente, também dependeu dos interesses em voga nesses diversos momentos históricos, como, por exemplo, erradicar índices altíssimos de um mal que envergonhava o país.

Assim, configurou-se a longa jornada dos analfabetos no Brasil e a construção do preconceito diante dessas pessoas que, por não terem tido oportunidades iguais de educação, ainda são culpadas pelo atraso e vergonha nacional.

Esperemos que, mais adiante, a partir da continuidade histórica e com novas construções sociais, outras “cenas” dos analfabetos possam ser descritas, desta vez não pondo em negatividade os analfabetos, mas o combate ao seu preconceito.

GALVÃO, A.M.; PIERRO, M.C.D. O preconceito contra o analfabeto. São Paulo, Cortez, 2007, Coleção Preconceitos, vol.2. p. 31-54.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A Interpretação das Culturas

Geertz revela no texto que o conceito de cultura que defende é aquele amparado na sua essência pela semiótica, isto é, essencialmente em um sistema de significações. Ainda segundo o autor, cultura são teias amarradas aos homens que eles mesmos teceram. E mais: a análise de culturas é a busca de significados.

Diante disso, os significados apresentam demasiada complexidade, uma vez que um simples gesto ou ação possuem uma variedade de intenções e possíveis interpretações.

Nesse sentido, para Geertz, a análise é dar um significado dentre vários outros existentes.


A análise é, portanto, escolher entre as estruturas de significação – o que Ryle chamou de códigos estabelecidos, uma expressão um tanto mistificadora, pois ela faz com que o empreendimento soe muito parecido com a tarefa de um decifrador de códigos, quando na verdade ele é muito mais parecido com a do crítico literário – e determinar sua base social e sua importância. (GEERTZ, 1978, p.19).


Sendo assim, o objetivo da Antropologia “é o alargamento do universo do discurso humano” (GEERTZ, 1978, p.24). A citação do autor expressa que a interpretação da cultura não é a cultura de fato. Na verdade, é uma das tantas interpretações possíveis de determinada cultura.

Interpretações estas que não podem ser previsíveis ou adivinhadas. Daí a complexidade do estudo antropológico em todas as suas etapas. Não existe para o autor, a possibilidade de uma mecanização do fazer antropológico e nem mesmo a apresentação da cultura como ela é, uma vez que a própria apresentação já sugere uma interpretação da cultura.

Assim, há de se tomar certo cuidado, pois para o autor a cultura e o fato natural (ou seja, a significação deste fato e o fato social em si) se fundem na medida em que se interpenetram e o saber e o fazer antropológico são em certa medida ficções (interpretações). E, a ficção pode ser inventada ou simplesmente anotada, isto é, pode-se correr o risco de que o fazer antropológico não seja reconhecido como a descrição da realidade.


Convencer-se disso é compreender que a linha entre o modo de representação e o conteúdo substantivo é tão intraçável na análise cultural como o é na pintura. E este fato, por sua vez, parece ameaçar o status objetivo do conhecimento antropológico, sugerindo que sua fonte não é realidade social, mas um artifício erudito. (GEERTZ, 1978, p.26).


Vale a pena dar uma lida...


GEERTZ, C. A Interpretação das culturas. R.J.: Zahar, 1978, cap. 1, p. 13-40.


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Morte ao xá!

Entre minhas divagações sobre o processo de aquisição de capital cultural conheci Marjane Satrapi, ou somente Marjie. Um garotinha encantadora que vive com sua família no Irã, mas em certos momentos de sua vida sente-se uma estrangeira em seu próprio país. Aprende muito com sua família e é isso que a guiará em todas as escolhas. Vale a pena assistir ao filme "Persepólis" que envolve questões como cultura ocidental/oriental, formação política advinda pela família, privação de liberdade em virtude de regime ditatorial, comunismo, religião/ciência etc. Enfim, um vídeo que retrata a dialética entre as culturas recebidas pela vivência social e os conflitos gerados no interior dos seres humanos. A própria existência!

Ficha Técnica
Título no Brasil: Persépolis
Título Original: Persepolis
País de Origem: França / EUA
Gênero: Animação
Classificação etária: 12 anos
Tempo de Duração: 95 minutos
Ano de Lançamento: 2007
Estúdio/Distrib.: Europa Filmes
Direção: Vincent Paronnaud / Marjane Satrapi
http://supercine-anarquia.blogspot.com/search?q=Persépolis.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

O des(re)conhecimento e o processo de transformação

Resolvi postar as belas palavras de Pablo Neruda em "O menino perdido" pois contempla muito bem a proposição do que venho perseguindo, que é a compreensão do ser humano em suas mais vastas relações. Mesmo que os indivíduos não fiquem a pensar em suas trajetórias e em seu constante processo de mutabilidade, não quer dizer que seguem seus caminhos de maneira estática. Cada ato, cada gesto promove sensações e vivências que, ao serem colocadas em reflexão, corroboram com o que denominamos vida. Um conjunto de comportamentos e práticas culturais que fazem os seres serem aquilo que são. Uma questão a ser colocada é que, desde que nascemos, não ficamos pensando em nossas ações: simplesmente fazemos. Fazemos porque grande parte do que precisamos realizar já está estruturado na sociedade. Não questionamos, simplesmente fazemos. Grande parte da sociedade cresce e continua a fazer aquilo que todos fazem, ou almejam fazer e realizar...Os padrões sociais estão tão bem construídos que o gosto estético e os comportamentos moldulam-se como um processo naturalizado, ou seja, há uma homologia entre o que os meios socializadores (escola, igreja, família, televisão, internet, jornais etc) produzem e o que os indivíduos incorporam. E é aí que reside a crença social: as inconsciências criadas pela coletividade. Isso porque a dominação não perpassa somente pelo viés econômico, mas também pelas relações afetivas, religiosas, culturais, sociais etc que não deixam de ser dominações simbólicas, pois geralmente são coercitivas de maneira oculta, imperceptíveis. Contudo, muitos agentes sociais não percebem tal relação de dominação, pois o indivíduo vê a sociedade e suas relações a partir de seu posicionamento nela, ou seja, a partir de suas disposições culturais e sociais e limitações dentro de determinada realidade. Por fim, apesar de Pablo Neruda retratar em seu poema que o menino não se reconhece mais, há aí uma estreita relação a ser pensada que se remete ao fato de que, embora muitas vezes não nos reconhecemos devido ao nosso processo de transformação, não podemos descartar que tudo aquilo que vivemos desde a mais tenra idade contribui para nos tornar o que somos, mesmo que seja um processo demorado, incompreensível e que nos leve ao não reconhecimento.

O menino perdido



Lenta infância de onde
como de um pasto comprido
cresce o duro pistilo,
a madeira do homem.
Quem fui? O que fui? O que fomos?
Não há resposta. Passamos.
Não fomos. Éramos. Outros pés,
outras mãos, outros olhos.
Tudo foi mudando folha por folha,
na árvore. E em ti? Mudou a tua pele,
o teu cabelo, a tua memória. Aquele que não foste.
Aquele foi um menino que passou correndo
atrás de um rio, de uma bicicleta,
e com o movimento
foi-se a tua vida com aquele minuto.
A falsa identidade seguiu os teus passos.
Dia a dia as horas se amarraram,
mas tu já não foste, veio o outro,
o outro tu, e o outro até que foste,
até que te arrancaste
do próprio passageiro,
do trem, dos vagões da vida,
da substituição, do caminhante.
A máscara do menino foi mudando,
emagreceu a sua condição enfermiça,
aquietou-se o seu volúvel poderio:
o esqueleto se manteve firme,
a construção do osso se manteve,
o sorriso,
o passo, o gesto voador, o eco
daquele menino nu
que saiu de um relâmpago,
mas foi o crescimento como um traje!
Era outro o homem e o levou emprestado.
Assim aconteceu comigo.
De silveste
cheguei a cidade, a gás, a rostos cruéis
que mediram a minha luz e a minha estatura,
cheguei a mulheres que em mim se procuraram
como se a mim tivessem perdido,
e assim foi sucedendo
o homem impuro,
filho do filho puro,
até que nada foi como tinha sido,
e de repente apareceu no meu rosto
um rosto de estrangeiro
e era também eu mesmo:
era eu que crescia,
era tu que crescias,
era tudo,
e mudamos
e nunca mais soubemos quem éramos,
e às vezes recordamos
aquele que viveu em nós
e lhe pedimos algo, talvez que se recorde de nós,
que saiba pelo menos que fomos ele, que falamos
com a sua língua,
mas das horas consumidas
aquele nos olha e não nos reconhece.

Pablo Neruda

sábado, 5 de fevereiro de 2011

BOHANNAN, L. “Shakespeare na selva”. In ALAN DUNDES(org.) Every Man his Way. Readings in Cultural Antropology, pp.477-86. Englewood Cliffs, N.J., Prentice Hall, 1968. ( Shakespeare entre os TIV).

Discorre sobre a rica relação entre culturas diferentes e o modo como determinadas visões culturais são percebidas e apreendidas quando não provém de sua cultura de origem.
Laura Bohannan introduz Hamlet, obra de Shakespeare, entre os Tiv da Nigéria e do mesmo modo que eles tiveram percepções diferenciadas e jamais imaginadas por um pensador ocidental moderno, a autora modificou sua maneira de percepção da mesma obra – que, por sinal, advém de sua cultura -, na medida em que entrou em contato com outras possibilidades de interpretação das questões imersas na obra. Isso a fez rever um pressuposto básico que tinha em mente, o de que a natureza humana é praticamente a mesma por todo o mundo; pelo menos a trama e a motivação das maiores tragédias seriam sempre compreensíveis em toda parte, embora alguns detalhes do costume tivessem que ser explicados, e as dificuldades de tradução requeressem algumas modificações.
Ao longo de todo o texto, que perpassa pela narrativa da obra de Hamlet pela autora e as fantásticas indagações dos ouvintes, principalmente os mais velhos, torna-se perceptível as diferenças culturais perante o erudito e o feiticeiro, a sabedoria dos mais velhos, a importância do chefe, a relação de parentesco, a monogamia, o agouro, a mortalidade, a loucura etc.


Região da Nigéria habitada pelos Tiv
Fonte: http://www.flickr.com/photos/gdstone/



Shakespeare na Selva
Laura Bohannan

Pouco antes daquela minha viagem de Oxford para os Tiv, na África Ocidental, conversávamos sobre a temporada em Stratford quando um amigo declarou o seguinte: “Vocês americanos têm uma certa dificuldade com Shakespeare. Ele era, afinal, um poeta essencialmente inglês, e o universal pode facilmente ser mal interpretado devido à incompreensão do particular.”
Eu protestei, alegando que a natureza humana é exatamente a mesma no mundo inteiro; pelo menos a trama genérica e a motivação das grandes tragédias seriam sempre claras− em qualquer lugar− embora alguns detalhes relativos aos costumes tivessem que ser explicados, e certas dificuldades de tradução pudessem produzir outras ligeiras alterações no sentido. Para acabar aquela discussão infindável, meu amigo ofereceu uma cópia de Hamlet para que eu a estudasse na selva africana− ele achava que assim eu poderia elevar minha mente acima da primitividade circundante e talvez conseguisse, depois de muito meditar, ser iluminada pela interpretação correta. Era o meu segundo período de campo naquela tribo africana e eu me sentia preparada para pesquisar em um de seus mais remotos segmentos− uma área difícil de atravessar até mesmo a pé. Acabei indo parar numa colina onde vivia um velho extremamente culto, chefe de um segmento com cerca de cento e quarenta pessoas, sendo que todas eram ou seus parentes próximos ou suas esposas e filhos. Como os outros anciãos da vizinhança, este velho passava a maior parte do tempo organizando cerimônias que atualmente são difíceis de se ver nas regiões mais acessíveis da tribo. Fiquei maravilhada. Breve chegariam os três meses de isolamento forçado e ociosidade, entre a colheita, que é feita imediatamente antes dos pântanos ficarem completamente alagados, e a abertura de novas roças, depois que as águas baixassem. Pensei que então eles teriam mais tempo para dedicar às cerimônias e explicá-las para mim. Estava completamente enganada. A maioria das cerimônias exige a presença de anciãos de diversos segmentos, e à medida que os pântanos iam enchendo ia ficando cada vez mais difícil para os velhos andarem de um segmento para outro, até que as cerimônias gradualmente cessaram. Quando as águas subiram ainda mais, todas as atividades foram suspensas, exceto uma. As mulheres preparavam cerveja de milho e painço. Homens, mulheres e crianças ficavam em suas colinas, bebendo cerveja.
Começava-se a beber ao amanhecer. Lá pelo meio da manhã todos estavam cantando, dançando e tocando tambor. Quando chovia as pessoas tinham que ficar dentro de suas cabanas, onde bebiam e cantavam, ou então bebiam e contavam estórias. De qualquer forma, lá pelo meio-dia ou antes, eu tinha que participar da festa ou então me retirar para minha cabana e meus livros. “Ninguém discute assuntos sérios quando tem cerveja. Venha, beba conosco.” Eu não tinha a capacidade deles para entornar aquela espessa cerveja nativa, e passei a ficar cada vez mais tempo com Hamlet. Antes de terminar o segundo mês, a iluminação baixou sobre mim. Fiquei certa de que havia apenas uma interpretação possível para Hamlet, que seria universalmente óbvia. Toda manhã, bem cedinho, eu costumava visitar o velho em sua cabana de recepção − um círculo de estacas sustentando o teto de colmo acima de uma baixa parede de adobe, para proteger do vento e da chuva− com a esperança de ter uma conversa séria antes da festa começar. Um dia, quando eu me esgueirei pelo baixo portal, encontrei a maioria dos homens do segmento, com suas roupas esfarrapadas, sentados nos bancos, nos jiraus baixos que serviam de cama e nas cadeiras reclinadas, todos amontoados em torno de um fogo esfumaçante para se aquecerem da friagem da chuva. No centro havia três potes de cerveja. A festa já tinha começado.
O velho me cumprimentou cordialmente. “Sente-se e beba.” Aceitei uma grande cuia cheia de cerveja, despejei um pouco numa cabacinha, e engoli. Em seguida despejei mais cerveja na mesma cabacinha e a ofereci ao homem cuja idade só era superada pela de nosso anfitrião; depois passei a cuia para um rapaz, de modo a continuar a distribuição. As pessoas mais importantes não se serviam pessoalmente de cerveja.
“Assim está bem,” disse o velho olhando aprovadoramente para mim e puxando um fiapo de palha que se enroscara em meus cabelos. “Você deveria se sentar e beber conosco mais vezes. Os seus empregados disseram que quando você não está aqui, fica sentada em sua cabana olhando para um papel.”
O velho conhecia quatro tipos de papéis: recibos de impostos, recibos do preço da noiva, recibos de fiança e cartas. O mensageiro que lhe trazia as cartas do chefe usava-as mais como emblema de seu cargo, pois sempre conhecia o conteúdo das cartas e as relatava ao velho. As cartas pessoais, para os poucos que tinham parentes nos postos do governo ou da missão, eram guardadas até que alguém fosse a uma das grandes feiras, onde encontraria um especialista em leitura e redação de cartas. Depois de minha chegada, eles passaram a me trazer as cartas para que fossem lidas. Alguns homens também trouxeram recibos do preço da noiva e pediram, muito em particular, para que eu alterasse as quantias estabelecidas, colocando um valor maior. Descobri que não adiantava recusar alegando valores morais, já que os parentes afins sempre são enganados e que era muito difícil explicar as dificuldades técnicas de uma falsificação para um povo iletrado. Não queria que eles ficassem pensando que eu era boba a ponto de ficar dias e dias olhando para um desses papéis, então expliquei que o meu papel era sobre umas coisas de antigamente de meu país.
“Ah,” disse o velho. “Conte-nos.”
Recusei, alegando que não sabia contar histórias. Contar histórias é uma arte entre eles; os padrões são altos e a audiência é muito crítica− e verbaliza as críticas. Minha recusa foi em vão. Naquela manhã eles queriam ouvir uma história enquanto bebiam. Finalmente o velho prometeu que ninguém iria criticar o meu estilo, “pois sabemos que você tem dificuldades com nossa língua.” “Mas você tem que explicar o que não entendermos,” acrescentou um dos anciãos, “como fazemos quando lhe contamos nossas histórias.” Percebendo que esta era minha grande chance para provar que Hamlet era universalmente inteligível, acabei concordando.
O velho me serviu um pouco mais de cerveja, para animar-me a contar a história. Os homens encheram seus longos cachimbos de madeira, acendendo-os com brasas retiradas da fogueira; então, fumando prazerosamente, voltaram a se sentar para me ouvir. Comecei no estilo apropriado, “Não foi ontem, não foi anteontem, foi há muito tempo que este fato aconteceu. Numa noite, três homens estavam de vigia fora da cidadela de um grande chefe, quando subitamente viram seu antigo chefe se aproximar.”
“Por que ele não era mais chefe?”
“Ele estava morto,” expliquei, “por isso eles ficaram tão perturbados quando o viram."
“Impossível,” disse um dos anciãos, passando seu cachimbo para um vizinho, que o interrompeu, “É claro que não era o chefe morto. Era um agouro enviado por um feiticeiro. Continue.”
Eu continuei, ligeiramente desconcertada. “Um dos três era um homem que sabia das coisas”− era a tradução mais fiel de erudito, mas infelizmente a expressão também significava “feiticeiro.” O segundo ancião olhou triunfante para o primeiro. “Então ele se dirigiu ao chefe morto, ‘Diga-nos o que precisamos fazer para que você possa descansar em seu túmulo’, mas o chefe morto não respondeu. Ele sumiu e não conseguiram vê-lo novamente. Então o homem que sabia das coisas− seu nome era Horácio− disse que aquilo era da competência de Hamlet, o filho do chefe morto.”
Muita gente discordou, balançando a cabeça. “O finado chefe não tinha mais nenhum irmão vivo? Ou seu filho era o novo chefe?”
“Não,” repliquei; “ou melhor, ele tinha um irmão mais moço, que se tornou chefe depois de sua morte.”
O velho resmungou: tais agouros eram questões a serem resolvidas por chefes e anciãos, e não por jovens; nada de bom se conseguira agindo pelas costas do chefe; estava claro que Horácio não era um homem que sabia das coisas.
“Era sim,” insisti, afastando uma galinha da minha cerveja. “Em nosso país o filho é o sucessor do pai. Mas o irmão mais moço do finado chefe tornou-se o grande chefe. Ele se casou com a viúva do irmão cerca de um mês após os funerais.”
“Fez muito bem,” o velho sorriu de satisfação, dirigindo-se aos outros. “Eu lhes disse que se soubéssemos mais a respeito dos europeus descobriríamos que eles são muito parecidos conosco.” “Em nosso país”, explicou-me, “o irmão mais moço também se casa com a viúva do mais velho, tornando-se o pai de seus filhos. Agora, se o tio casado com sua mãe for irmão de seu pai por parte de pai e de mãe, então ele será um verdadeiro pai para você. O pai e o tio de Hamlet eram filhos da mesma mãe?”
Custei a entender sua pergunta; eu estava irritada e completamente desnorteada ao perceber que um dos elementos mais importantes de Hamlet fora sumariamente descartado. Meio insegura, respondi que achava que eram filhos da mesma mãe, mas não tinha certeza − a história não dizia. O velho observou, com severidade, que estes detalhes genealógicos dariam margem a muitas diferenças e que quando eu voltasse para meu país deveria perguntar aos mais velhos. E então gritou para uma de suas jovens esposas, que estava fora da cabana, pedindo que trouxesse sua sacola de couro de cabra.
Determinada a resgatar o que eu pudesse deste problema com a mãe, respirei profundamente e recomecei. “Hamlet estava muito triste porque sua mãe se casara imediatamente após enviuvar. Ela não precisava ter feito isso, sendo nosso costume uma viúva guardar dois anos de luto antes de partir para o próximo marido.”
“Dois anos é muito tempo,” objetou a jovem esposa, que aparecera com a sovada sacola de couro de cabra. “Quem vai arar seus campos enquanto você não tiver marido?”
“Hamlet”, retorqui sem pensar, “já tinha idade suficiente para arar os campos de sua mãe. Ela não precisaria ter se casado de novo.” Ninguém se convenceu. Desisti. “A mãe e o grande chefe disseram para Hamlet não ficar triste, pois o grande chefe seria um verdadeiro pai para ele. Além disso, Hamlet seria o próximo chefe: portanto deveria ficar com eles e aprender as coisas da chefia. Hamlet concordou em ficar, e todos foram beber cerveja.”
Quando fiz uma pausa, sem saber como apresentar o angustiado monólogo de Hamlet para uma audiência convencida de que o comportamento de Cláudio e Gertrudes era o mais decente possível, um dos jovens perguntou quem tinha se casado com as outras esposas do grande chefe.
“Ele não tinha outras esposas,” respondi.
“Mas um chefe tem que ter muitas esposas! Senão, como é que ele vai conseguir fazer cerveja e preparar comida para todos os seus hóspedes?”
Reafirmei energicamente que em nosso país até mesmo os chefes tinham apenas uma esposa; disse que eles tinham empregados para fazer o trabalho das esposas e pagavam os empregados com o dinheiro dos impostos.
Eles responderam que seria bem melhor para o chefe ter muitas esposas e filhos, pois todos o ajudariam a arar seus campos e alimentar o povo, e então todo o povo amaria este chefe, capaz de dar muito e nada pedir em troca − os impostos eram uma coisa ruim.
Concordei com o último comentário; mas, quanto ao resto, recorri à mesma fórmula usada por eles para se esquivarem às minhas perguntas: “É nosso costume, por isso fazemos assim.”
Decidi pular o monólogo. Mesmo que eles pensassem que Cláudio agira corretamente ao desposar a viúva do irmão, restava a questão do veneno, e eu sabia que eles desaprovariam o fratricídio. Mais esperançosa, resolvi resumir: “naquela noite Hamlet ficou de vigília com os três homens que tinham visto seu finado pai. Ele apareceu novamente e, embora os outros ficassem amedrontados, Hamlet foi atrás dele. Quando se afastaram um pouco, o finado pai de Hamlet falou.”
“Agouros não podem falar!” O velho foi enfático.
“O finado pai de Hamlet não era um agouro. Vê-lo pode ter sido um agouro, mas ele era outra coisa.” Minha audiência parecia tão confusa quanto eu. “Era o finado pai de Hamlet, algo que nós chamamos de ghost.” Tive que usar a palavra fantasma em inglês pois, ao contrário de inúmeras tribos vizinhas, aquele povo não acreditava na sobrevivência de nenhuma parte individualizada da pessoa depois da morte.
“O que é ghost? Um agouro?”
“Não, ghost é alguém que já morreu mas que fica vagando pelo mundo e pode falar; as pessoas podem ouvi-lo e vê-lo, mas não podem tocá-lo.”
Eles protestaram. “Pode-se tocar os zumbis.”
“Não, não! Não era um cadáver que os feiticeiros tivessem animado para sacrificar e comer. Não foi ninguém que fez o finado pai de Hamlet andar. Ele podia andar.”
“Mortos não podem andar,” objetou a audiência em uníssono.
Eu já estava querendo contemporizar. “Ghost é a sombra do morto.”
Eles protestaram novamente. “Os mortos não lançam sombras.”
“No meu país sim,” retruquei com impertinência.
O velho sufocou os murmúrios de descrença que imediatamente se fizeram ouvir e me disse, naquele tom insincero e cortês usado para concordar com as extravagâncias dos jovens, dos ignorantes e dos supersticiosos: “Não resta dúvida de que em seu país os mortos podem andar sem serem zumbis.” E então tirou das profundezas de sua sacola um pedacinho murcho de noz de cola, mordeu uma pontinha para mastigar e mostrar que não estava envenenada e me passou o resto, como oferenda de paz.
“Bem,” continuei, “o finado pai de Hamlet disse que fora envenenado por seu próprio irmão, que agora era o chefe. Ele queria que Hamlet o vingasse. Hamlet acreditou de coração, pois não gostava do irmão do pai.” Tomei um gole de cerveja. “No país do grande chefe, vivendo no mesmo segmento, que era muito grande, havia um ancião que estava sempre com o grande chefe para aconselhá-lo e ajudá-lo. Seu nome era Polônio.
Hamlet estava cortejando sua filha, mas o pai e o irmão dela... (procurei rapidamente um analogia tribal) advertiram a jovem para não deixar Hamlet procurá-la quando estivesse trabalhando sozinha no campo, pois ele iria ser um grande chefe e poderia não querer se casar com ela.”
“Por que não?” perguntou a esposa do velho, que se sentara numa ponta de sua cadeira. Ele a encarou carrancudo, por perguntar coisas estúpidas, e resmungou: “Por que eles moravam no mesmo segmento.”
“Não foi por isso,” informei-o. “Polônio era um estranho que vivia naquele segmento por haver ajudado o chefe, não porque fosse um parente.”
“Então por que Hamlet não podia se casar com ela?”
“Ele podia,” expliquei, “mas Polônio achava que não se casaria. Afinal de contas, Hamlet era um homem muito importante e deveria se casar com a filha de um chefe, pois em meu país um homem só pode ter uma mulher. Polônio temia que se Hamlet fizesse amor com sua filha ninguém mais se disporia a pagar um bom preço por ela.”
“Talvez seja verdade,” observou um dos mais sagazes anciãos, “mas o filho de um chefe daria tantos presentes e tantas facilidades ao pai de sua amante que valeria à pena. Este me parece um tolo.”
“Muita gente achava isso,” concordei. “Neste meio tempo Polônio mandou seu filho Laerte para Paris aprender as coisas daquela terra, onde vivia um chefe muito poderoso. Temendo que Laerte gastasse todo o seu dinheiro com bebidas, mulheres e jogos, ou se metesse numa encrenca brigando com alguém, Polônio mandou secretamente um de seus empregados para Paris, espionar o que Laerte estava fazendo. Um dia Hamlet encontrou-se com a filha de Polônio, Ofélia. Ele se comportou tão extravagantemente que ela ficou assustada. Na verdade, (atrapalhei-me com as palavras, para expressar a ambigüidade da loucura de Hamlet) o chefe e vários outros homens já haviam notado que quando Hamlet falava podia-se entender as palavras, mas não o significado das frases. Muita gente achava que ele tinha ficado louco.” De repente minha audiência passou a prestar mais atenção. “O grande chefe queria saber o que havia de errado com Hamlet, então mandou chamar dois rapazes que foram iniciados com ele (explicar o que era colega de escola teria levado muito tempo), dizendo-lhes para conversar com Hamlet e descobrir o que atormentava seu coração. Percebendo que haviam sido subornados pelo chefe e iriam traí-lo, Hamlet nada falou. Mas Polônio afirmava que Hamlet enlouquecera porque estava proibido de se encontrar com Ofélia, a quem amava.”
“E isso seria motivo,” indagou uma voz perplexa, “para alguém enfeitiçar Hamlet?”
“Enfeitiçá-lo?”
“Sim, só a feitiçaria pode enlouquecer; a menos, é claro, que alguém veja os seres que se ocultam na floresta.”
Parei de contar minha história, peguei o caderno de campo, e pedi mais informações acerca destas duas causas da loucura. Mesmo enquanto eles falavam e eu tomava notas, não parei de pensar sobre o efeito desta nova variável na trama. Hamlet não se aproximara dos seres que se ocultam na floresta. Só os parentes da linha paterna poderiam enfeitiçá-lo. Excluindo-se os parentes não mencionados por Shakespeare, restava Cláudio, que estava tentando prejudicá-lo. Só podia ter sido ele.
Voltando à história, e tentando evitar outras perguntas, fui logo dizendo que o grande chefe também se recusava a acreditar que Hamlet enlouquecera por amor a Ofélia, sem nenhum outro motivo. “Ele tinha certeza de que algo muito mais importante estava envenenando o coração de Hamlet.”
“Então chegaram amigos de Hamlet,” continuei, “trazendo um famoso contador de histórias. Hamlet decidiu fazer com que ele contasse, ao chefe e todos os demais, a história de um homem que matou seu próprio irmão porque desejava a cunhada e queria tornar-se chefe. Hamlet tinha certeza de que o grande chefe se atraiçoaria através de algum sinal caso fosse realmente culpado, e assim ele saberia se seu finado pai dissera a verdade.”
O velho interrompeu, perguntando ardilosamente: “Mas por que um pai mentiria para seu próprio filho?”
Fui meio evasiva: “Hamlet ainda não estava seguro de que fosse o seu finado pai.”
Seria impossível falar sobre as visões inspiradas pelo demônio na língua deles.
“O que você quer dizer,” observou o velho, “é que na verdade era um agouro, e ele sabia que às vezes os feiticeiros enviam falsos agouros. Hamlet foi um tolo por não ter ido logo procurar um especialista na decifração de presságios e na adivinhação da verdade. Um homem-que-vê-a-verdade poderia lhe contar como seu pai morrera, se fora realmente envenenado ou se houvera feitiçaria; então Hamlet poderia ter chamado os anciãos para resolver o caso.”
Aquele ancião sagaz aventurou-se a discordar. “Mas como o irmão do pai de Hamlet era o grande chefe o homem-que-vê-a-verdade poderia ter medo de falar. Acho que foi por isso que um dos amigos do pai de Hamlet− um feiticeiro ou um ancião− enviou um agouro para avisar o filho do amigo. O agouro era verdadeiro?”
“Sim,” concordei, abandonando os fantasmas e o demônio; teria que ser mesmo um agouro enviado por um feiticeiro. “Era verdade, pois quando o contador de histórias começou sua narrativa, diante de todo o povo, o grande chefe ergueu-se, apavorado. Temeroso de que Hamlet conhecesse seu segredo, ele decidiu matá-lo.”
A apresentação do próximo trecho da história envolvia mais algumas dificuldades de tradução. Comecei cautelosamente. “O grande chefe pediu à mãe de Hamlet para descobrir do filho até onde ele sabia. Mas, como os filhos estão sempre em primeiro lugar no coração de uma mãe, ele fez com que o eminente ancião Polônio se escondesse atrás de um pano pendurado numa das paredes da cabana de dormir da mãe de Hamlet. Hamlet iniciou a conversa repreendendo sua mãe pelo que ela havia feito.”
Houve um murmúrio de desaprovação na audiência. Um homem nunca deve repreender sua própria mãe.
“Ela gritou apavorada, e Polônio se mexeu atrás do pano. Gritando, ‘Um rato!’ Hamlet sacou o seu facão e golpeou através do pano.” Fiz uma pausa para dar efeito dramático. “Ele tinha matado Polônio.”
Os velhos se entreolharam, chocados. “Este Polônio era mesmo um tolo, um homem que não sabia de nada! Qualquer criança seria capaz de gritar ‘Sou eu!’” Lembrei-me, com agonia, de que este é um povo de grandes caçadores, sempre armados com arcos, flechas e facões; ao menor ruído na mata eles prepararam o arco para atirar, e o caçador grita ‘Caça!’ Se nenhuma voz humana responder de imediato, a flecha é disparada. Como um bom caçador, Hamlet gritara ‘Um rato!’
Apressei-me em salvar a reputação de Polônio. “Mas Polônio gritou, e Hamlet ouviu. Ele pensou que fosse o chefe, e queria matá-lo, para vingar seu pai. Ele tinha resolvido matá-lo naquela mesma noite...” Parei, incapaz de descrever para estes pagãos, que não acreditavam na vida depois da morte, a diferença entre morrer com a graça de Deus e morrer sem receber a eucaristia, desiludido, sem a extrema-unção.
Desta vez eu tinha realmente escandalizado a audiência. “Um homem que ergue a mão contra o irmão de seu pai, justamente aquele que se tornara seu pai, isto é uma coisa horrível. Os anciãos deviam deixar tal homem ser enfeitiçado.”
Meio perplexa, dei uma mordida em minha noz de cola e argumentei que afinal de contas aquele tio matara o pai de Hamlet.
“Não,” rebateu o velho, dirigindo-se mais aos jovens que se sentavam atrás do ancião do que para mim. “Se o irmão de seu pai tiver matado seu pai, você deve recorrer aos homens que foram iniciados com seu pai; eles o vingarão. Nenhum homem deve usar de violência contra seus parentes mais velhos.”
Ocorreu-me uma nova idéia. “Mas já que esse irmão do pai era perverso a ponto de enfeitiçar Hamlet, tornando-o louco, seria muito bem feito, pois seria culpa dele mesmo o fato de Hamlet ter enlouquecido e, não tendo mais juízo, ser capaz de matar o irmão do próprio pai.”
Houve um murmúrio de satisfação. Para eles, Hamlet era de novo uma história interessante, mas para mim não era mais a mesma história. Ao pensar nas próximas complicações da trama e dos sentimentos, perdi a coragem e decidi contar rapidamente as passagens mais difíceis.
“O grande chefe,” continuei, “não se entristeceu pelo fato de Hamlet ter matado Polônio. Isto lhe dava uma pretexto para afastar Hamlet, que viajou junto com aqueles dois que haviam sido iniciados com ele e o estavam atraiçoado, pois levavam cartas para o chefe de um país distante, dizendo que Hamlet deveria ser morto. Mas Hamlet mudou o que estava escrito nas cartas de modo que o chefe matou seus companheiros, ao invés dele.” Encontrei olhar indignado de um dos homens a quem dissera que uma falsificação perfeita, além de ser imoral, estava acima das possibilidades humanas. Desviei rapidamente os olhos.
“Antes que Hamlet pudesse retornar, Laerte voltou para o funeral do pai. O grande chefe lhe disse que Hamlet tinha matado Polônio. Laerte jurou matar Hamlet para vingar o pai, e também porque sua irmã, Ofélia, ao saber que o pai fora morto pelo homem que amava tinha ficado louca e afogou-se no rio.”
“Você já se esqueceu do que lhe dissemos?” O tom de voz do velho era reprovador. “Ninguém pode se vingar de um louco e Hamlet matou Polônio num acesso de loucura. Quanto à moça, além de estar louca, foi afogada. Só os feiticeiros podem fazer alguém se afogar. A água em si não faz mal a ninguém. É algo para se beber e se banhar, nada mais.”
Comecei a ficar zangada. “Se vocês não gostam da história, vou parar.”
O velho emitiu grunhidos apaziguadores e ele mesmo me serviu de mais cerveja. “Você conta bem a história, e nós queremos ouvir. Mas é claro que os anciãos de seu país nunca lhe disseram o que ela realmente significa. Não, não me interrompa! Acreditamos em você quando diz que seus costumes matrimoniais são diferentes, que suas roupas e armas são diferentes. Mas as pessoas são as mesmas em toda parte; sendo assim existem feiticeiros, e somos nós, os anciãos, que sabemos como eles trabalham. Nós lhe dissemos que era o grande chefe que queria matar Hamlet, e depois suas próprias palavras confirmaram que tínhamos razão. Quem eram os parentes masculinos de Ofélia?”
“Apenas seu pai e seu irmão.” Hamlet estava completamente fora de meu controle.
“Ela devia ter muitos outros; você também precisa perguntar isto aos anciãos, quando voltar ao seu país. Pelo que nos contou deve ter sido Laerte quem matou Ofélia, já que Polônio estava morto, mas eu não vejo razão para isso.”
Tínhamos esvaziado um dos potes de cerveja, e os velhos começaram a discutir esta questão com a vivacidade de quem já está meio tocado. Finalmente um deles perguntou: “O que disse o empregado de Polônio ao voltar?”
Lembrei-me de Reinaldo e de sua missão com dificuldade. “Eu acho que ele só voltou depois da morte de Polônio.”
“Ouça,” disse o mesmo velho, “pois vou lhe contar o que aconteceu, e como a história continua, e então você dirá se estou certo. Polônio sabia que seu filho ia se meter em encrencas, como de fato aconteceu. Ele precisava pagar muitas multas por causa de brigas, e tinha dívidas de jogo. Ele só tinha dois meios de conseguir o dinheiro rapidamente. Um deles seria casar a irmã imediatamente, mas era difícil encontrar um homem que quisesse desposar a mulher desejada pelo filho do chefe. Pois se o herdeiro do chefe cometer adultério com sua mulher, o que é que você pode fazer? Só um tolo faria queixa do homem que um dia irá ser seu juiz. Portanto só lhe restava a segunda opção: Laerte matou a irmã com feitiçaria, afogando-a, para depois poder vender seu corpo aos feiticeiros, secretamente.”
Levantei uma objeção. “Mas o corpo foi encontrado e enterrado. Na verdade Laerte entrou dentro do túmulo para ver sua irmã pela última vez − assim, o corpo realmente estava lá. Hamlet acabara de regressar, e entrou atrás dele.”
“O que foi que eu disse?” O ancião apelou para os outros. “Laerte não tinha boas intenções com o corpo da irmã. Hamlet o impediu de vendê-lo, pois o herdeiro do chefe, tanto quanto o chefe, não quer que nenhum outro homem se torne rico e poderoso. Laerte deve ter ficado furioso por ter matado sua irmã sem obter qualquer proveito. Em nosso país ele tentaria matar Hamlet por causa disso. Não foi o que aconteceu?”
“Mais ou menos,” admiti. “Quando o grande chefe soube que Hamlet ainda estava vivo, incentivou Laerte a matá-lo, e arranjou uma luta de facão entre eles. Nesta luta os dois jovens se feriram mortalmente. A mãe de Hamlet bebeu a cerveja envenenada que o chefe preparara para Hamlet, caso ele vencesse a luta. Ao ver sua mãe morrer envenenada, Hamlet, num último esforço, matou o irmão de seu pai com o facão.”
“Vejam como eu tinha razão!” exclamou o ancião.
“A história é muito boa,” acrescentou o velho, “e você nos contou cometendo apenas poucos enganos. Tem mais um erro, bem no final. O veneno que a mãe de Hamlet bebeu era obviamente destinado ao sobrevivente da luta, quem quer que fosse ele. Se Laerte vencesse seria envenenado pelo grande chefe, para que ninguém ficasse sabendo que ele planejara a morte de Hamlet. E também para não se sentir ameaçado pelo poder de Laerte como feiticeiro, pois é preciso ter o coração muito duro para matar a própria irmã com feitiçaria.”
“De vez em quando,” concluiu o velho, envolvendo-me em sua toga rasgada, “você precisa nos contar outras histórias de seu país. Nós, que somos mais velhos, podemos esclarecê-la sobre o verdadeiro significado das histórias, de modo que quando você voltar para sua terra os anciãos vão ver que você não ficou à toa na selva, pois esteve com gente que sabe das coisas e lhe transmitiu sabedoria.”

Originalmente publicado em Natural History, 75 (1996).
Tradução: Lilian Valle
Revisão: Kátia Maria Pereira de Almeida
(redigitado por Elisa F. de Souza Corrêa)
Departamento de Antropologia Social
ICHF – UFF- 1989

Cult?