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segunda-feira, 23 de maio de 2011

Pensamento sociológico de Bernard Lahire

Muito interessante este artigo que apresenta uma entrevista feita com Bernard Lahire, via e-mail, pela professora da Faculdade de Educação da USP - Maria da Graça Jacintho Setton e disponível na revista Educação e Pesquisa, no ano de 2004. De modo conciso é possível apreender algumas das visões deste sociólogo sobre o universo da cultura, sociedade e educação. Segue abaixo alguns trechos da entevista e também o link para aqueles que tiverem o interesse de ler o artigo na íntegra.



Trajetória acadêmica e pensamento sociológico: entrevista com Bernard Lahire



Educação e Pesquisa: Parece interessante que o senhor nos conte sobre sua formação acadêmica e trajetória profissional, onde o senhor estudou, qual foi seu ponto de partida, quais são suas principais atividades e posição atual no meio universitário francês.

Bernard Lahire: Sou, como já disse, um produto puro da "universidade de massa". Sem dúvida, como você sabe, o sistema do ensino superior na França se distingue pela existência de um percurso nobre (classes preparatórias para as GrandesÉcoles)1 e um percurso escolar mais comum (universidade). Eu ingressei na universidade (a de Lyon 2) e aí construí o essencial de meus conhecimentos sociológicos.

O ensino de sociologia em Lyon sempre foi marcado pela existência de uma pluralidade de escolas teóricas com as quais tive de me confrontar desde o início do curso. Nenhum dos grupos de professores — nem as diferentes categorias de marxistas, nem os bourdieusianos, nem os interacionistas, nem os foucaultianos, nem alguns dos tourainianos que lá estão... — era maioria de fato na universidade. Na verdade, era um tanto desconcertante para os estudantes de sociologia, que ouviam discursos muito diferentes e contraditórios, mas penso hoje que foi uma sorte para mim ter sido obrigado a viver permanentemente em dúvida sobre a pertinência das diferentes teorias sociológicas (que são ensinadas em outras universidades mais "monocromáticas", sob o espírito de catequese).

Proveniente de um ambiente popular, vindo de um dos bairros operários de Lyon, o estudo da sociologia agiu sobre mim como uma revelação. Cheguei à universidade com os questionamentos e as inquietações próprias à minha situação de trânsfuga de classe, e nela encontrei a sociologia, que começou a me trazer respostas satisfatórias. Rapidamente comecei a viver a sociologia como uma vocação e de forma apaixonada. Para mim não se tratava de uma simples formação acadêmica e de um simples percurso em busca de um diploma, mas de uma verdadeira experiência íntima, existencial, vital. Percorri todas as etapas sem saber muito bem aonde iria chegar (e, por vezes, sem saber exatamente o que viria depois), mas tinha a impressão de viver um privilégio enorme (e quase ilegítimo) ao passar meus dias (e por vezes também minhas noites) construindo meu olhar e minha profissão de sociólogo.

Essa dedicação inicial e freqüentemente considerada "irracional" só podia produzir efeitos bastante positivos na aquisição de conhecimentos. Sendo assim, percorri as diferentes etapas com relativa facilidade, sempre trabalhando intensamente, e em seguida tive a oportunidade de obter um posto de mestre de conferências (aos 29 anos) e, sobretudo, de professor universitário (aos 31 anos), bastante jovem. Fui ainda beneficiado, entre 1995 e 2000, com excelentes condições de trabalho para realizar pesquisas no Instituto Universitário da França2 (um tipo de Collége de France3 descentralizado). E, finalmente, em 2000, fui admitido na Escola Normal Superior de Letras e Ciências Humanas, quando esse estabelecimento deixou a região parisiense para se estabelecer em Lyon. É nesse espaço intelectual privilegiado (para o qual a seleção é particularmente severa) que eu ensino e pesquiso atualmente.

Em relação à sociologia havia ainda tudo a ser feito, uma vez que cheguei com a possibilidade de recrutar os colegas com os quais eu iria trabalhar. Sou o responsável pela sociologia desde o início. Montei ali também um laboratório ligado ao CNRS,4 intitulado Grupo de Pesquisa sobre a Socialização, que dirijo desde janeiro de 2003.

EP: O senhor poderia explicar as pequenas mas significativas transformações sofridas ultimamente por seus objetos de pesquisa? Inicialmente o senhor havia trabalhado no domínio da sociologia da educação, nos meios populares e, mais recentemente, o senhor se debruçou sobre a questão das práticas culturais dos franceses. Que relações o senhor estabeleceria entre educação e cultura?

BL: Meus primeiros trabalhos referiam-se, com efeito, ao fracasso escolar de crianças de meios populares na escola primária, levando em conta a especificidade da cultura escrita escolar (Culture écrite et inégalités scolaires. Sociologie de l' "échec scolaire" à l'école primaire6). Sustentei a hipótese de que a origem das dificuldades estava diretamente ligada à natureza da cultura escolar e ao tipo de contribuição à linguagem (mais reflexiva, distanciada, meta-linguística) que a escrita tornou possível. Posteriormente procurei observar aquilo que dizia respeito aos adultos dos meios populares, seus usos da escrita (seu modo de apropriação dos textos; suas práticas domésticas e profissionais da escrita) e descobri, nesse meio tempo, uma extraordinária divisão sexual das tarefas domésticas que envolviam a escrita: as mulheres dos meios populares escreviam muito mais que seus parceiros (La Raison des plus faibles. Rapport au travail, écritures domestiqueset lectures enmilieux populaires).7

A partir disso procurei encontrar casos improváveis de sucessos em meios populares para compreender as razões que fazem com que se tenha sucesso ali onde, estatisticamente, se deveria fracassar (Tableaux de familles. Heurs etmalheurs scolaires en milieux populaires).8 Como eu trabalhava paralelamente no Observatório da Vida Estudantil, em Paris, também tomei por objeto as formas de estudar e as práticas culturais extra-escolares dos jovens que seguiam os estudos superiores (Les Manières d'étudier).9 Enfim, acabei por tomar como objeto os discursos públicos que tratam das dificuldades de escrever dos franceses, discursos que me parecem carregar verdadeiros fantasmas sociais sobre as "classes iletradas" considerando-as como novas classes perigosas (L'invention del' "illetrisme". Rhétorique publique, éthique et stigmates).10

Direta ou indiretamente, meu trabalho sempre esteve no entrecruzamento de uma sociologia da educação e da cultura. Mais recentemente, no entanto, abri um grande campo de pesquisa sobre a relação dos franceses com a cultura legítima, que retomou a questão abordada por Pierre Bourdieu em La distinction,11 a saber, a da função social da cultura nas sociedades com divisão de classes. Mas, mesmo nesse último trabalho — La Culture das individus. Dissonances culturelles et distinction desoi — que claramente diz respeito à sociologia da cultura, encontra-se a marca dos efeitos do sistema escolar sobre os perfis culturais individuais. Não se pode trabalhar sobre os usos da cultura fazendo abstração da grande ligação existente nas sociedades fortemente escolarizadas entre capital escolar e práticas e preferências culturais. O volume e a natureza (literária versus científica) do capital escolar adquirido determinam em grande parte os gostos e disposições culturais.

EP: Sua crítica à teoria do habitus de Bourdieu parte do fato de que esse conceito não recobre a multiplicidade de referências identitárias vividas pelo homem contemporâneo. Considerando que esse conceito de habitus não pode ser dissociado de sua relação de interdependência com um campo social, como não vê-lo sendo construído a partir de uma nova arquitetura cultural? Acredito que esse conceito de habitus não pode ser interpretado unicamente como sinônimo de uma memória sedimentar e imutável; trata-se de um sistema de disposições continuamente construídas, abertas e sujeitas a novas experiências. O que o senhor pensa a esse respeito?

BL: Para ser mais preciso, eu não falo de "identidades múltiplas" ou de "referências identitárias", mas de pluralidade e de heterogeneidade de disposições incorporadas por cada agente nas sociedades com forte diferenciação social, nas quais a família não tem mais o monopólio da educação legítima das crianças. O argumento que eu desenvolvo em L'Homme pluriel12 é que se definimos o habitus como um sistema homogêneo de disposições gerais, permanentes, sistemas transferíveis de uma situação à outra, de um domínio de práticas a outro, então cada vez menos agentes de nossas sociedades serão definíveis a partir de um tal conceito. Esse tipo de definição convém melhor para sociedades bastante homogêneas, demograficamente frágeis, com extensão geográfica relativamente pequena, que oferecem esquemas socializantes bastante estáveis e coerentes para seus membros. Nas sociedades em que as crianças conhecem muito cedo uma diversidade de contextos socializantes (a família, a babá ou a creche, a escola, os grupos de iguais, etc.) os patrimônios individuais de disposições raramente são muito coerentes e homogêneos. Bourdieu pensava que seria sobre a base de um habitus familiar bastante coerente já constituído que as experiências ulteriores adquiriam sentido. Os esquemas de socialização são de fato muito mais heterogêneos e cada vez mais precoces.

EP: Como o senhor interpreta o papel do sujeito social na teoria de Norbert Elias, notadamente no que diz respeito à relação de interdependência entre as instituições sociais e os indivíduos? Que proximidade e que distanciamento podem existir entre o conceito de habitus de Elias e de Bourdieu?

BL: Acredito que Bourdieu e Elias não tinham a mesma coisa em mente quando falavam de habitus. Em Norbert Elias, essa noção mantém-se bastante fluida e geral (ele fala em habitus nacional). Bourdieu foi um dos que mais procurou definir esse conceito. Elias e Bourdieu pensavam os indivíduos como seres totalmente sociais, que são inteiramente socializados e cuja economia psíquica é fundamentalmente social, mas Elias nunca foi além de um uso superficial desse termo. Por seu lado, Bourdieu teorizou a noção, mas nunca trabalhou sobre a produção do habitus sobre a constituição de disposições constitutivas do habitus. Se o tivesse feito, ele teria se dado conta que uma parte de sua definição (e notadamente a questão da transferabilidade dos esquemas ou das disposições) não é evidente. Uma outra diferença entre a abordagem eliasiana e a abordagem bordieusiana, é o fato de que Elias apresenta como centro de sua sociologia a idéia de relações de interdependência entre indívíduos que formam então configurações sociais específicas e se constroem por meio dessas relações de interdependência. Bourdieu definiu os indivíduos sobretudo pelo volume e estrutura de seu capital (essencialmente o econômico e o cultural). Ainda que aparentadas, estas são duas concepções antropológicas definitivamente bastante diferentes.

EP: A presença das mídias constitui uma reflexão "obrigatória" para aqueles que atualmente pensam a educação, notadamente para aqueles que se debruçam sobre os processos de socialização próprios ao mundo contemporâneo. O senhor acredita que as mídias podem ser consideradas como um novo "agente" de socialização? Por quê? Qual é a importância das mídias na França? Elas desempenham papéis equivalentes em países "desenvolvidos", como a França, e naqueles "em desenvolvimento", como o Brasil?

BL: As mídias como o rádio ou a televisão transformaram profundamente a relação que os indivíduos mantinham com a cultura e o lazer. É toda uma cultura do lar, doméstica (mais do que do que cultura de saídas13) que progressivamente se instalou. E também, de uma certa maneira, um poderoso meio de controle (certamente indireto e não intencional) das populações (basta ver o deserto em que se transformam as ruas das grandes cidades nas noites de grandes jogos de futebol televisionados). Levando-se em conta o tempo passado pelas crianças diante da televisão ou ouvindo o rádio, ninguém dúvida que isto modificou as condições de socialização infantil. Mas é difícil fazer das mídias agentes autônomos de socialização, uma vez que os efeitos das mídias são eles próprios mediatizados e filtrados pelos pais e pela escola: não se assiste da mesma forma à televisão em meios sociais diferentes, em função da situação escolar (boa ou má), etc. As mídias, portanto, só têm o poder que lhes damos: elas só exercem seu poder com a cumplicidade tácita dos adultos que permitem que se assista a elas ou que a elas assistem.

EP: Quais são as referências teóricas que lhe permitem pensar o papel das mídias em relação aos processos atuais de socialização?

BL: Eu mesmo nunca trabalhei diretamente sobre o papel das mídias audiovisuais nos processos de socialização. Mas acredito que uma boa sociologia dos usos sociais das mídias deverá se apoiar sobre as aquisições da sociologia da recepção (inspirada na sociologia da apropriação de Michel de Certeau, da estética da recepção de Hans R. Jauss ou da história cultural, cujo programa foi traçado pelo historiador da leitura Roger Chartier). Ela deverá lutar contra a idéia inicial de que as mensagens e as imagens se imprimem diretamente na mente das pessoas que assistem à televisão ou ao rádio. Trata-se de mostrar, levando-se em conta suas diferentes experiências sociais passadas, que as diferentes categorias de telespectadores ou ouvintes não tratam da mesma forma os programas que lhes damos para ver e ouvir. Os ouvintes ou telespectadores não se apropriam dos programas de maneira homogênea.

EP: Em seu livro Sucesso escolar nos meios populares, diferentes configurações familiares são exploradas de modo a esclarecer vantagens específicas e, ao mesmo tempo, permitir a construção de características gerais ligadas aos sucesso escolar. Como poderíamos aplicar essa mesma solução metodológica ao contexto escolar, superando a idéia de escola como um meio social homogêneo?

BL: Se quisermos considerar a escola em seus aspectos mais singulares, será necessário estudar as relações que se estabelecem entre alunos singulares e professores com características relativamente singulares (homens ou mulheres, jovens ou velhos, crianças de classe alta, média ou das classes populares, seguidores de determinada pedagogia, etc.), em contextos pedagógicos sempre singulares (estilo pedagógico da escola, características da população escolarizada, modo de inserção da escola no tecido urbano, etc.). Procurei destacar a diversidade de configurações familiares em meios populares que explica, em grande parte, as diferenças do destino escolar de crianças que, no entanto, têm capital familiar inicial bastante semelhante. Talvez seja necessário tentar descobrir, agora do lado da escola, a diversidade de situações e apontar para os contextos mais favoráveis ao sucesso escolar das crianças dos meios populares.

Notas

1. Trata-se de um curso preparatório para o ingresso em uma seção particular do sistema de ensino francês, as "Grandes Escolas", estabelecimentos de ensino superior que preparam para as posições de poder do aparelho de Estado ou do setor privado. São instituições altamente seletivas, nas quais se ingressa mediante concurso. Entre elas podemos citar: Escola Central, Escola Politécnica, Escola Nacional de Administração, Escola de Altos Estudos Comerciais, Instituto Nacional Agronômico e as Escolas Normais Superiores.
2. O Institut de France, criado em 1795, é um organismo altamente prestigiado no sistema de ensino francês e congrega várias instituições do ensino superior. Está diretamente ligado ao Ministério da Educação do país.
3. O Collège de France é uma instituição de ensino atípica. Está sob a responsabilidade do chefe de Estado, que delega sua tutela ao Ministério da Educação. Seus cursos não são ministrados de maneira convencional, ou seja, não sofrem nenhum tipo de regulação, inscrição ou avaliação. Mais informações podem ser encontradas em Almeida, A. O Collège de France e o sistema de ensino francês. In: CataniI, A. e Martinez, P. (Org.). Sete ensaios sobre o Collège de France. São Paulo: Cortez, 1999.
4. Centro Nacional de Pesquisa Científica, instituição de pesquisa vinculada ao Ministério da Educação francês, que congrega vários grupos de estudo e pesquisa, em parceria com professores do ensino superior ou pesquisadores autônomos.
5. La Culture des individus. Dissonances culturelles et distinction de soi. Paris: La Découverte, 2004.
6. Culture écrite et inégalités scolaires. Sociologie de l' "échec scolaire" à l'école primaire. Lyon: PUL, 1993.
7. La Raison des plus faibles. Rapport au travail, écritures domestiqueset lectures enmilieux populaires. Lille: Pul, 1993.
8. Tableaux de familles. Heurs etmalheurs scolaires en milieux populaires. Paris : Gallimard/ Seuil, Hautes Études, 1995. Traduzido no Brasil como Sucesso Escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Atica, 1997.
9. Les Manières d'étudier. Paris: La Documentation Française, 1997.
10. L'Invention del' "illetrisme". Rhétorique publique, éthique et stigmates. Paris: La Découverte, 1999.
11. La distinction: critique sociale du jugement. Paris: Minuit, 1979.
12. L'Homme pluriel. Les ressorts de l'action. Paris: Nathan, 1998. Traduzido no Brasil como Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002.
13. Cultura de saídas é um conceito usado na literatura sobre lazer para se referir à prática de atividades culturais exercidas fora de casa.

Trajetória acadêmica e pensamento sociológico: entrevista com Bernard Lahire. Educ. Pesqui. [online]. 2004, vol.30, n.2, pp. 315-321. ISSN 1517-9702. doi: 10.1590/S1517-97022004000200009.


Link para ler artigo na íntegra:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022004000200009

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