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terça-feira, 17 de maio de 2011

A importância das mídias na aquisição de disposições culturais e construção de um novo capital cultural

Reproduzo abaixo um artigo de muita relevância para a discussão acerca da aquisição de disposições culturais, assim como para a formação de habitus. Isso porque, Maria da Graça Jacintho Setton atualiza o pensamento de autores como Pierre Bourdieu e Bernard Lahire revelando a construção de um novo capital cultural, não mais centrado apenas em instituições como família e escola, mas também dando destaque ao importante papel das mídias.


UM NOVO CAPITAL CULTURAL: PRÉ-DISPOSIÇÕES E DISPOSIÇÕES À CULTURA INFORMAL NOS SEGMENTOS COM BAIXA ESCOLARIDADE

MARIA DA GRAÇA JACINTHO SETTON


Sobre as pré-disposições e disposições à cultura informal

Em Les héritiers, les étudiantes et la culture, Pierre Bourdieu & Jean Claude Passeron (1964), em um estudo pioneiro, com base em uma abordagem macroestrutural, analisam os índices de produtividade escolar entre jovens franceses de distinta origem social. Desmistificando o discurso da escola libertadora, Bourdieu explicita os mecanismos perversos e ocultos responsáveis pelas desigualdades no aproveitamento e no rendimento de estudantes pertencentes a diferentes grupos sociais. Em outro texto, mais precisamente em Os três estados do capital cultural, este autor esclarece: “A noção de capital cultural impôs-se, primeiramente, como uma hipótese indispensável para dar conta da desigualdade de desempenho escolar de crianças provenientes das diferentes classes sociais” (Bourdieu, 1998, p. 73). Dando continuidade à suas investigações, em A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura (1998), Bourdieu com base em análises estatísticas, observa também que existe uma correlação estreita entre algumas variáveis pertinentes ao perfil da família e o sucesso escolar de seus filhos. Além da formação cultural dos antepassados da primeira e segunda gerações e do local de residência da família (centro ou periferia), o autor chama atenção para o ramo do estudo secundário (profissionalizante ou propedêutico), o tipo de estabelecimento de ensino (público ou privado) do estudante, bem como para o modelo demográfico da família e o sentido da trajetória social (ascendente ou descendente) do chefe do grupo familiar, como variáveis importantes e fortemente relacionadas com o sucesso educacional dos estudantes (Bourdieu, 1998, p. 42-45).
No entanto, para ele, nenhuma dessas variáveis desempenharia isoladamente um fator determinante. O que interessava afirmar é que existem fatores extra-escolares – econômicos e culturais – que influenciam sobremaneira no desempenho e no aproveitamento do estudante. O importante era revelar que existem diferenças de várias ordens, principalmente de acesso aos bens da cultura, entre as famílias, que são responsáveis pela variação no comportamento e no rendimento relativos aos estudos.
Ou seja, afirmava que “na realidade, cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre outras coisas, as atitudes em face do capital cultural e da instituição escolar” (Bourdieu, 1998, p. 42). Isto é, a posse de um certo capital cultural e de um ethos familiar predisposto a valorizar e incentivar o conhecimento escolar seriam importantes elementos para se alcançar um sucesso acadêmico. Neste sentido, crianças mais abastadas e com maior acesso aos bens culturais seriam aquelas que teriam as maiores chances de obter um bom desempenho escolar.
Em síntese, Bourdieu alertou para as diferenças nas condições de acesso a uma cultura geral e, como decorrência, apontou para as condições diferenciadas de aquisição de uma cultura escolar. Em outras palavras, distinguiu dois tipos de aprendizado; de um lado, o aprendizado precoce e insensível, efetuado desde a primeira infância, no ambiente familiar, podendo ou não ser prolongado por um aprendizado escolar que o pressupõe e o complementa; de outro, o aprendizado tardio, metódico, adquirido fora da família, nas instituições de ensino ou em outras esferas informais da educação. A distinção entre esses dois tipos de aprendizado refere-se, pois, a duas maneiras de adquirir a cultura e de ter acesso a ela, e com ela se familiarizar (Bourdieu, 1979, 1998). Neste sentido, para Bourdieu “capital cultural” é um conceito que explicita um novo tipo de capital, um novo recurso social, fonte de distinção e poder em sociedades em que a posse desse recurso é privilégio de poucos (Bourdieu, 1996a). Refere-se a um conjunto de estratégias, valores e disposições promovidos principalmente pela família, pela escola e pelos demais agentes da educação, que predispõe os indivíduos a uma atitude dócil e de reconhecimento ante as práticas educativas.
Para o desenvolvimento desta reflexão, seria importante alertar, no entanto, que o capital cultural como recurso estratégico pode ser cultuado de várias formas. Ou seja, é preciso salientar que a posse desse novo capital pode derivar de investimentos culturais diversos. Pode se expressar na forma de diplomas, na visitação a museus e assistência a concertos eruditos ou, na sua impossibilidade, pode se expressar em comportamentos menos aristocráticos não deixando de ser utilizado como capital distintivo. Isto é, na falta de diplomas, na ausência do hábito de freqüentar os templos da cultura, esse novo recurso pode ser explicitado em atitudes mais simples. Neste estudo quero salientar que a leitura de jornais e revistas, a assistência interessada a uma programação televisiva informativa, a audiência a entrevistas com especialistas, ou viagens pela internet (entre outras possibilidades) podem servir também como estratégias de adquirir os bens da cultura e do conhecimento e de ter acesso a estes. Em outras palavras, quero destacar uma outra ordem de estratégias e/ou práticas culturais que demonstram uma abertura ante o aprendizado informal/formal difundido por instânciasainda não consagradas como legítimas.
De uma certa forma o que proponho é considerar uma outra maneira de conceber o conceito de “capital cultura”. Ou seja, a proposta é ampliar seu entendimento, contudo garantindo o sentido que o qualifica como recurso, como um novo elemento de poder e diferenciação social. Embora em Os três estados do capital cultural Bourdieu (1998) explicite e construa uma definição para as três modalidades deste conceito – capital cultural incorporado, capital cultural objetivado e capital cultural institucionalizado –, referindo-se notadamente à familiaridade ou experiência cultural dos segmentos médios e de elite, e neste sentido baseados sobretudo em uma cultura familiar e escolar distintiva, considero importante registrar que, ao formular o conceito, Bourdieu não desconsidera a existência dos grupos populares na disputa pela cultura legítima. O que ele afirma é que as diferenças de acesso à cultura e de aquisição desta entre os grupos sociais conferem aos mais privilegiados um poder real e simbólico que os habilita a apresentar os melhores desempenhos escolares. Para Bourdieu os segmentos populares não estão fora das disputas e dos conflitos de ordem cultural instaurados nas sociedades modernas. A própria concepção de sociedade de Bourdieu considera as tensas relações de interdependência entre os grupos sociais (Bourdieu, 1982). Neste sentido, para este autor os segmentos populares não são destituídos de recursos que os habilitam a participar das lutas simbólicas. Ao contrário, Bourdieu enfatiza que a desigual distribuição desse recurso raro estimula o conflito. Imposta pelas classes letradas e dominantes como sendo a cultura legítima, a cultura culta precisa ser sistematicamente valorizada por um conjunto de estratégias e rituais de consagração (exames de seleção, diplomas, formaturas, álbuns de formatura, becas etc.) para que seja legitimamente aceita e reconhecida por todos.
Posto isto, para uma melhor compreensão do conceito de “capital cultural” nos segmentos populares, proponho focalizar a heterogeneidade das configurações familiares estudadas a fim de contextualizar suas vivências. Creio que seria necessário observar os grupos populares em suas singularidades cultural, moral e ética, extraindo de suas vivências os usos variados que fazem da apropriação de outras formas de cultura, sejam elas legítimas ou não.
Proponho aqui circunstanciar a variedade de situações encontradas entre as famílias pesquisadas, em que um incentivo, uma disposição ante a apreensão de informação pôde assumir o papel de elemento distintivo uma vez que essa informação teve o potencial de transformar-se em conhecimento. Ou seja, a) considerando esta “disposição” ou abertura a todo tipo de informação como uma estratégia de aquisição de cultura, seja ela em sua expressão escolar ou não, b) considerando o produto dessa estratégia um recurso construído a partir de investimentos diversos, c) não vendo esse recurso apenas como uma prerrogativa de segmentos privilegiados, d) bem como considerando as condições de sua apropriação e uso, creio que é possível ampliar o entendimento do conceito de “capital cultural”, pondo em evidência sua complexidade. Explorando a dinâmica de criação desse capital e concebendo-o como uma forma de recurso, em constante construção, não pertencendo objetivamente ao indivíduo, contudo caracterizando-o e habilitando-o distintivamente em algumas circunstâncias sociais, é possível então historicizar e contextualizar sua utilização em diferentes segmentos sociais.



A interdependência de recursos informais – a construção de um novo capital cultural




De uma certa forma, Bernard Lahire contribui também para visualizar o uso prático dos recursos construídos, consciente ou inconscientemente, como um capital cultural. Em uma outra perspectiva, mas dialogando também com o conceito, e enfatizando a heteroge-
neidade das experiências de socialização dos grupos populares, Lahire, em Sucesso escolar nos meios populares (1997), alerta para as possibilidades e condições de utilização desse novo recurso social. Considera que a presença objetiva de um capital cultural só terá sentido se este for colocado em condições que tornem possível sua “transmissão”. Para ele, não basta uma criança estar cercada de objetos ou circular em ambientes estimulantes do ponto de vista escolar. É preciso estar atento para as modalidades efetivas de “transmissão” destas disposições culturais (Lahire, 1997, p. 338). Segundo este autor, as competências e os estímulos relativos ao acúmulo de capital cultural podem não surtir efeito quando não encontrarem situações para que sejam postos em prática. Na verdade, mesmo tendo baixo capital cultural, a transmissão de uma outra forma de valorizar o trabalho escolar deve ser considerada. Ter ou não ter acesso aos bens da cultura escolar ou informal não nos fala sobre as possibilidades de transmissão, não nos ajuda a compreender as condições que efetivamente propiciam a apropriação de disposições culturais. Lahire (1997) alerta também para a necessidade de se reconsiderar ainda a noção de “transmissão”, pois ela não esclarece o trabalho de apropriação e de construção efetuado pelos indivíduos. Não consegue apreender a inevitável transformação do “capital cultural” no processo de “outorgação” de uma geração para outra (...). Sendo ainda esta noção mais inadequada para conceber as freqüentes situações em que algo se “transmite” – ou melhor, se constrói – sem que nenhuma intenção pedagógica tenha sido visada (...) (Lahire, 1997, p. 341).
Nesse mesmo livro, Lahire, dando continuidade a suas reflexões, oferece algumas idéias a respeito do processo de transmissão cultural, as quais se tornam notadamente interessantes para este estudo. Trabalha especificamente com a) as formas familiares da cultura escrita, b) as condições e disposições econômicas, c) a ordem moral doméstica, d) as formas de autoridade familiar e, por último, e) as formas familiares de investimento pedagógico. Ou seja, para o desenvolvimento do argumento deste artigo, saliento que Lahire, ao considerar cinco temas que organizam as análises das configurações familiares de estudantes com sucesso escolar improvável, abre espaço para outras abordagens sobre os mesmos temas.
Considero que a originalidade de sua reflexão está em explorar com cuidado a complexa rede de determinação dos fatores relativos ao sucesso escolar dos segmentos populares. Assumindo uma nova perspectiva metodológica, Lahire revela uma abordagem circunstanciada da interdependência de elementos nas configurações familiares e escolares que explicariam, em tese, um sucesso escolar improvável. Entretanto, embora ainda sendo fiel às suas contribuições, gostaria de apresentar aqui uma outra configuração. Isto é, considero necessário chamar atenção para outras formas familiares de acesso à cultura, além da escolar, bem como às condições de estabilidade psicológica vivida pelas famílias brasileiras pesquisadas.
Creio, contudo, que seria interessante explicitar, primeiramente, o conjunto de variáveis favoráveis ao sucesso acadêmico de uma maneira geral, tanto entre os alunos brasileiros como entre os franceses, para depois, em um segundo momento, apresentar as especificidades do contexto estudado no Brasil.



Compondo as configurações familiares




A ordem moral doméstica e as formas de autoridade familiar são, segundo Lahire (1997), importantes elementos que compõem a organização das famílias. O autor entende a ordem moral como um tipo de disposição que se aprende no exercício da socialização. Ou seja, é uma predisposição à obediência, à aceitação sem revolta às propostas educativas concretizadas nos ambientes escolares mas que, por certo, são adquiridas anteriormente no eixo familiar. A organização doméstica refletida nos horários rígidos das refeições, nos horários de ida e volta à escola, com ou sem o acompanhamento paterno/materno, nos momentos da lição de casa e/ou do lazer, são fortes elementos estruturadores de uma vida regrada segundo princípios de uma moral do bom comportamento.
Na falta de um domínio com relação aos conhecimentos escolares, uma socialização baseada na valorização da disciplina e da obediência parece ocupar um papel de destaque nas famílias investigadas tanto por Lahire como por mim. E, como bem coloca este autor, a organização moral e material em casa pode refletir na escolaridade dos filhos porque é indissociavelmente uma ordem cognitiva. Gestão de um interior e gestão interior são atividades que caminham de forma paralela. Uma estrutura familiar material e temporalmente ordenada transmite, de maneira inconsciente, métodos de organização nas estruturas cognitivas ordenadas, predispostas a funcionarem como estruturas de classificação do mundo (Lahire, 1997, p. 26-27).
Simultaneamente a este sistema doméstico calcado na disciplina de uma rotina diária, é preciso estar atento também para as questões relativas às formas de autoridade familiar. Se a organização de um interior favorece a organização cognitiva dos sujeitos, poderia afirmar também que a existência de uma autoridade paterna/materna vivida com legitimidade pode certamente refletir na aceitação da autoridade vinda da escola. Um aprendizado familiar baseado na presença de figuras seguras de sua posição de autoridade bem como um trabalho pedagógico em sua confiabilidade parecem ser importantes neste processo de socialização. A linearidade dos procedimentos, a similaridade dos códigos de convivência entre pais e filhos e entre autoridades escolares e alunos são condições que possibilitam uma harmonia de propostas, ou seja, uma coerência de projetos pedagógicos que podem ajudar em uma maior produtividade escolar. Para os objetivos deste artigo, seria importante salientar que a coincidência de projetos educativos entre a família e a escola foi, portanto, um importante fator de socialização para o sucesso acadêmico nos alunos pesquisados (Dubet, 1996).
É preciso estar atento também para as formas familiares de investimento pedagógico. Elas se referem ao empenho da família em um projeto de ascensão social via sistema de ensino. São práticas relativas à procura por uma escola particular ou por uma melhor escola pública da região, ou mesmo no oferecimento de condições propícias aos estudos na compra de livros e material didático. É possível observá-las também na valorização do trabalho da escola ou na participação familiar nas propostas acadêmicas e até na concessão de tempo para a dedicação aos estudos, como mecanismos presentes nas configurações familiares que se diferenciam por criar estratégias pedagógicas informais.
Lahire chama atenção ainda para as condições de estabilidade econômica como um fator tranqüilizador importante no universo das configurações familiares. Ou seja, uma certa tranqüilidade, uma relativa distância das emergências da sobrevivência material. Não obstante, pude observar que, ainda que o fator econômico não seja uma constante entre as famílias investigadas, uma reserva financeira sempre assegurada para a manutenção de uma organização doméstica está bastante presente. Uns com casa própria, outros com salários pequenos sempre disponíveis, a ajuda de familiares, ou duplas jornadas de trabalho para ambos os pais são circunstâncias que colocaram os alunos brasileiros pesquisados em situação privilegiada com relação às demais famílias dos segmentos populares.
Entretanto, embora creia que este elemento seja de fato de fundamental importância para a configuração de um eixo familiar estável, gostaria de acrescentar um outro fator de estabilidade. Poderia chamá-lo de condições e disposições dialógicas, ou seja, uma estabilidade de natureza psicológica também fundamental para garantir uma estrutura familiar com relações predispostas ao diálogo, à conversa, a uma abertura para trocas de experiências. Uma configuração familiar em que se valoriza o conforto psicológico, a segurança afetiva, o reconhecimento de emoções e dificuldades ao longo da trajetória de crescimento dos filhos. Condições que certamente favoreceram o contato, a troca de estímulos e, portanto, a transmissão mais assegurada de valores culturais identitários. Neste sentido, presenciei condições ideais para a transmissão/interiorização de uma herança, de um capital moral, ético e cultural, valorizado pelos familiares.
Em outras palavras, creio que as condições e disposições de ordem material, aliadas às disposições de ordem psicológica, são fatores relevantes para se pensar biografias estudantis de sucesso. O diálogo cotidiano, a abertura para se ouvir e trocar informações sobre o futuro, a sensibilidade para escutar sobre planos e investir em expectativas de carreira parecem ser comuns em alguns núcleos familiares. Foi possível identificar que o incentivo, o empenho, o crédito dado aos filhos com trajetória acadêmica valorizada (pela escola/ou não) foram pontos de apoio relevantes para o desenvolvimento de condições de confiança e de auto-estima por parte dos indivíduos investigados por mim.
É preciso alertar, entretanto, que, mesmo considerando que as condições de estabilidade material e psicológica sejam requisitos de igual importância, não considero contudo que essas condições favoráveis caminhem juntas, ou seja, coexistam simultaneamente nas configurações familiares. Creio, ao contrário, que isso seria apenas uma possibilidade. Outros fatores poderiam estar atuando em conjunto, apontando então para novas biografias.
Por último, seria interessante refletir sobre as formas familiares de acesso à cultura. Lahire dá uma ênfase bastante grande aos hábitos de leitura e escrita das famílias. Entretanto sua ênfase recai não apenas sobre o aspecto da presença de tais habilidades e na familiaridade com elas, mas sobretudo recai sobre os efeitos de longo prazo que esses aprendizados precoces oferecem para o processo de socialização dos estudantes. Como vimos, Lahire chama atenção para o fato de que a existência de um capital cultural familiar – a posse de diplomas, o gosto pela leitura ou a freqüência a cinemas ou teatros – não determina, não garante mecanicamente a posse de cultura dos herdeiros. Segundo ele, é necessário estar atento para as formas de se relacionar com a cultura, as formas de transmissão, de apreensão e de apropriação dessa herança. É preciso então observar as condições desse processo de transmissão/interiorização para entender esses recursos como responsáveis ou artífices de um sucesso.
Contudo, se as contribuições de Lahire nesta abordagem dos condicionamentos familiares de ordem cultural são inegáveis, gostaria de considerar que, onde ele chama atenção para as formas familiares de cultura escrita, pode-se acrescentar, de maneira complementar, uma outra forma de cultura. Chamo atenção para as formas familiares de cultura geral, sendo cultura geral aqui entendida não só a cultura escrita, mas a cultura visual, midiática, a cultura da rua e das vivências experimentadas virtualmente.
Creio que para o universo de investigação brasileiro foi necessário ampliar o tema da cultura escrita, proposta por Lahire, para as formas familiares de contato, apreciação e valorização de um universo de bens simbólicos ainda não legitimado, vivido e propiciado sobretudo nas formações sociais modernas e em desenvolvimento. Foi preciso estar atenta para as profundas transformações pelas quais as sociedades latino-americanas, e entre elas a brasileira, passaram e vêm passando desde meados da década de 1950, no que se refere ao acesso a bens da cultura de massa, e a seu papel altamente educativo e socializador (Ortiz, 1997[?]; Giddens, 1991 e 1994; Thompson, 1995; Hall, 1997; Kellner, 2001).
Segundo Martín-Barbero (2000), falar das relações entre os meios de comunicação de massa e a escola, no universo cultural latino-americano, é observar uma nova experiência educacional que problematiza o monopólio do saber de uma cultura escolar e letrada: “O que portanto necessitamos pensar é a profunda compenetração – cumplicidade e complexidade de relações – que hoje se produz na América Latina entre a oralidade, que perdura como experiência cultural primária das maiorias, e a visualidade tecnológica, essa forma de ‘oralidade secundária’ tecida e organizada pelas gramáticas tecnoperceptivas do rádio e do cinema, do vídeo e da televisão” (Martín-Barbero, 2000, p. 47). Esta nova arquitetura cultural enseja então um descentramento nas experiências educativas. “Se já não se escreve, nem se lê como antes, é porque tampouco se pode ver, nem expressar como antes (...)” “O estouro das fronteiras espaciais e temporais que eles (os meios) introduzem no campo cultural, des-localiza os saberes, deslegitimando as fronteiras entre razão e imaginação, saber e informação, saber especializado e experiência profana (...)” (idem, ibid., p. 18).
Posto isto, faz-se necessário salientar que, no caso dos estudantes brasileiros, as maneiras de se relacionar e valorizar o saber da cultura da mídia surgiram nos depoimentos como importantes elementos que potencializaram uma pré-disposição familiar ao sucesso escolar, constituindo-se, pois, em um novo recurso ou capital. Em outras palavras, chamo a atenção para a particularidade da realidade cultural/educacional da modernidade vivida por esses estudantes, que põe à disposição de todos um saber, embora não tendo todos as mesmas condições de apropriação. Saberes difusos propiciados pelas emissões radiofônicas, pela programação da TV, pelas novelas, pelos fascículos, pela produção de programas didáticos, de entrevistas ou de conselhos médicos, que estão disponíveis e abertos para todos, seriam alguns exemplos de novas experiências educativas informais encontradas no universo pesquisado por mim.
De uma certa forma estou afirmando que as transformações de ordem cultural derivadas sobretudo da evolução da reprodutibilidade técnica dos textos e das imagens, tal como a diagnosticada por Walter Benjamin (1983) na década de 30 do século passado, colaboram com uma nova forma de apreender, usar e usufruir as produções culturais. Para este autor, a evolução técnica possibilita o despertar e a ampliação de nossa sensibilidade perceptiva e cognitiva. E oferece novas condições de apropriação e recepção de representações e conhecimentos sobre o mundo. Neste sentido pode-se pensar na ampliação do potencial das capacidades reflexivas do indivíduo contemporâneo. As transformações quantitativas da difusão das mensagens – na forma de escrita ou na forma de imagens – aguçam a sensibilidade, ampliam a esfera e os espaços difusores de conhecimento (Morin, 1984; Martín-Barbero, 1995, 2000, 2002). Induzem para o aumento da capacidade reflexiva pois oferecem uma multiplicidade de saberes, constituindo-se numa nova realidade perceptiva e cognitiva das formações contemporâneas, para o indivíduo. Enfim, a maior difusão da informação pode ampliar o escopo de um conhecimento de experiências alheias, virtuais, distantes das relações face a face.
Neste sentido, não seria mais possível pensar a educação em sua acepção tradicional, como instrução formal empreendida sobretudo nas instituições formais do ensino (Baccega, 2002; Citelli, 2002). É necessário estar aberto para outras formas de aprendizado, e aqui saliento aquele divulgado por agentes que estão fora dos círculos legitimamente reconhecidos como educativos. Embora com propostas distintas à escola ou à família, chamo atenção para o caráter socializador e educativo das produções da cultura das mídias no universo brasileiro pesquisado. Chamo atenção para sua capacidade de potencializar – em continuidade ou em ruptura – disposições com relação ao aprendizado adquiridas previamente no ambiente familiar ou escolar. Penso ser necessário circunstanciar então os usos desse material educativo, a fim de compreender a complexidade e a ambigüidade de suas realizações (Setton,
1999, 2002).


Breve caracterização do grupo pesquisado

Os dados apresentados neste artigo se referem sobretudo às entrevistas feitas com dez (10) alunos e algumas de suas mães, a fim de apreender a articulação das configurações familiares e o sucesso escolar apresentado. Após um exaustivo trabalho que visou à localização dos estudantes, escolhi aqueles que respondiam, em grande parte, às exigências da pesquisa. Ou seja, procurei alunos provenientes de lares com baixa escolaridade e baixos rendimentos econômicos, mas que apresentavam uma trajetória acadêmica de sucesso, a) já que tinham chegado ao topo da hierarquia estudantil – o ensino superior, b) em uma universidade pública competitiva e c) freqüentavam cursos de elite (Setton, 2001). A intenção das entrevistas era identificar a articulação das estratégias educativas postas em prática pela família e pelo aluno.
O grupo de estudantes pesquisados demonstrou ser bastante heterogêneo. Composto por quatro mulheres e seis homens, com idades bastante variadas, nem todos poderiam ser caracterizados como provenientes das classes populares. Duas das alunas, Débora e Deby, embora tenham sido incluídas na amostra, destacavam-se pois vinham de la- res em que a estabilidade socioeconômica tinha sido uma marca em suas vidas. Uma, filha de operário qualificado, torneiro mecânico, sempre contou com a ajuda de seu avô, marcando decisivamente um certo conforto econômico, se comparada com seus colegas. A segunda, filha
de um tratorista, moradora de uma cidade do interior, sempre contou com uma rede de amigos que lhe possibilitou a circulação em ambientes sociais mais favorecidos. Os outros, sem exceção, têm origem em círculos sociais bastante humildes.
A formação escolar entre eles mostrou-se também bastante heterogênea. Dois estudantes apenas freqüentaram todo o ciclo fundamental e médio em escolas privadas. Assim, grande parte é oriunda da escola pública. Para os homens a realidade de um ensino técnico, no segundo grau, foi bastante significativa. Valendo-se de estímulos familiares (exceção feita à Paula), principalmente de suas mães, a trajetória de sucesso desses alunos, contudo, não foi vivida sem problemas. A maior parte deles teve outras experiências no ensino superior ou amargou alguns anos em cursinhos para vestibular.
Com relação a lazeres ou práticas culturais, foi possível detectar, como era de se esperar, um baixo consumo. Limitados financeiramente, quase todos tinham como seu único espaço de entretenimento a rua, o esporte e a TV; lazeres domésticos e bastante econômicos.
Se, de um lado, destaca-se nesse grupo a figura materna e o constante diálogo entre esta e seus filhos, por outro, a presença da figura paterna é pouco comentada. Entretanto, a importância de irmãos mais velhos nesse processo é muito grande, já que muitos dos alunos pesquisados se valeram das experiências desses irmãos ou foram influenciados por eles. Vale chamar atenção, ainda neste particular, para o pequeno estímulo acadêmico dos professores nessa trajetória. Foi possível observar que estes têm um papel secundário na vida dos alunos pesquisados. Embora a autoestima dos alunos, inclusive a auto-estima de seus familiares, com relação ao sucesso escolar, viesse sobretudo de uma avaliação positiva proveniente da escola, não apareceu em nenhum depoimento a figura de um mestre orientando ou ajudando nas decisões de leitura ou nas escolhas profissionais. É possível afirmar que a construção dessa trajetória foi feita por eles mesmos, a partir de modelos exteriores à escola e à família (Dubet, 1996). Desta, contaram com o apoio econômico, psicológico e pedagógico, o que já não é pouca coisa.


Evidências empíricas

Partindo de uma perspectiva singular de análise (Setton, 2002), procurei observar as articulações de sentido entre as estratégias pedagógicas identificadas nos depoimentos dos entrevistados. Seguindo as sugestões de Lahire (1997), explorei as múltiplas configurações entre as agências – família e escola – mas, sensibilizada com um conjunto de trabalhos que refletem sobre a emergência de uma nova ordem sociocultural no Brasil, após os anos de 1950, propus trabalhar a hipótese de que outras fontes educativas – as mídias – poderiam estar presentes, potencializando as trajetórias acadêmicas dos alunos investigados.
Cabe ressaltar que a importância da presença da cultura escrita e/ou do hábito da leitura, no universo familiar brasileiro pesquisado, é extremamente importante. Não diagnostiquei uma diluição ou perda de relevância da cultura letrada. Ao contrário, a cultura escrita não tem aqui um espaço reduzido, mas divide esse espaço com outras formas de linguagem provenientes da cultura de massa. O que se evidencia é que, junto da cultura letrada, foi possível detectar a presença de um outro tipo de cultura no cotidiano do estudantado que o pré-dispôs, junto com as estratégias familiares, a construir uma trajetória escolar meritória. Foi possível constatar que o acesso a um saber informal midiático, em ambientes familiares dóceis à cultura escolar, ampliou o referencial cultural dos alunos, potencializando um melhor desempenho escolar. As evidências estão inscritas nos discursos e nos depoimentos a respeito
de assuntos que promoveram um entendimento sobre o universo cultural dos entrevistados. Nas questões relativas ao lazer, ao tempo livre, aos hábitos de leitura ou escrita, ficou evidente a familiaridade de todos com o material posto à disposição pela cultura das mídias.
Neste sentido, vale ressaltar que foi possível registrar várias experiências de contato precoce com o material escrito. Ora herdeiros de práticas de leitura entre seus familiares, pais, mães ou irmãos mais velhos, ora sem referências familiares, a presença da leitura ou da cultura escrita está em quase todos os depoimentos. Para os objetivos deste artigo é importante ressaltar, como faz Martín-Barbero, que

o livro continua e continuará sendo a chave da primeira alfabetização formal que, em vez de se fechar sobre si mesma, deve hoje pôr as bases para essa segunda alfabetização que nos abre às múltiplas escrituras, hoje conformando o mundo audiovisual e da informática. Estamos diante de uma mudança nos protocolos e processos de leitura, que não significa, nem pode significar, a simples substituição de um modo de ler por outro, senão a articulação complexa de um e outro (...). (Martín-Barbero, 2000, p. 62)

Ressalto, contudo, que o curioso e particular ao universo brasileiro, suscitando um maior envolvimento investigativo, é que, junto desta forma específica de prática cultural – a cultura escrita –, outras de igual importância emergem dos relatos das vivências dos alunos e de seus familiares. Entre elas destaco a cultura propiciada pela cultura das mídias. Mais que isso, em muitos momentos foi possível observar que a cultura escrita não esta restrita à cultura letrada e escolar, dos livros clássicos ou indicados para o vestibular, mas a uma cultura escrita em versão mais vulgar, mais massificada, desvalorizada e deslegitimada, se pensarmos com critérios acadêmicos (Bourdieu, 1979, p. 59, 70, 83).
A presença de fascículos é bem freqüente nos depoimentos e se destaca nas respostas relativas à escolha de carreira e à seleção da faculdade a ser cursada.

Eu dizia a ela, você não vai entrar na USP e ela dizia: porque vou, porque vou, então você vai na banca, naquela época tinha aquelas revistas, fascículos do vestibular, e ela comprou todo mês, não me lembro, comprou aquelas revistas e estudava, estudava aquilo de cabo a rabo, porque não tinha orientação de ninguém... (Mãe da Magy)
Então a primeira opção que eu tive... fui buscar o Guia do Estudante que é uma revista especializada nisso, né? E... busquei as matérias, as disciplinas que tivessem mais afinidade, no caso seria mais humanas. (Ricardo)


A literatura best-seller surge nos relatos quando vão caracterizar seus envolvimentos com a leitura ou como tiveram acesso a um material pouco valorizado pela escola e ainda desconhecido pela família.

Eu era associado ao Círculo do Livro e, naquela época de inflação e congelamento de preços, os livros ficaram num preço irrisório e eu comprava 3 ou livros por mês, era mais best-sellers; na época não tinha muito método para escolher, eu lia de tudo, Sidney Sheldon, Stephen King... (Duda)

No que se refere às revistas em quadrinhos, as narrativas sobre seus usos são bastante heterogêneas. Elas estão presentes nas práticas de lazer que estimulam o conhecimento das letras e seu aprendizado, como também na socialização com os colegas e seu estímulo à imaginação.

Ah, agora chegou no ponto das revistas, ele junto com dois amigos quando ele era criança, ainda estudando, na quarta série até a oitava, eles inventaram até de escrever revistas em quadrinhos... eles pintavam, desenhavam e as revistinhas em quadrinhos; ele tem coleção em casa, tem caixas enormes guardadas, Mulher Maravilha, Homem-Aranha, Capitão América, tudo que saía na época, ele comprava nas bancas, às vezes ele me pedia, quando ele não trabalhava ainda... (Mãe do Otávio)
Eu sozinha... acredite se quiser, minha mãe nem tinha tempo para isso, ela trabalhava sem parar, então ela me deu revistinhas da Mônica, gibi, e me deu a cartilha Caminho suave, eu nunca me esqueci dos desenhos, hoje eu tenho os estudos, eu me lembro ainda de estar sentada numa balança lendo a cartilha... do meu jeito, lendo os quadrinhos, eu aprendi realmente sozinha.... (Magy)


O acesso aos jornais e o interesse pela sua leitura são lembrados nas questões relativas à iniciação às primeiras letras e à conseqüente curiosidade de poder discutir e participar das decisões do mundo dos adultos.

Eu tive acesso, meu pai era manobrista e trazia sempre o jornal diário da empresa em que ele trabalhava na época. Tinha o jornal da recepção que ficava para todo mundo e no fim do dia ele trazia, eu tinha interesse..., eu acabava vendo aquilo lá, tanto que eu aprendi ler antes de entrar na escola, com 4 anos eu lia, também por estímulo da minha mãe e por curiosidade, via muita TV também, noticiário e a programação infantil que na época tinha mais qualidade... Era um jornal diário mesmo, ele trazia, já estava requentada a notícia, 8 ou 10 da noite, mas eu tinha interesse de, eu tinha lá meus 4/5 anos, eu me lembro deste jornal.... (Israel)
Eu pesquisava... Guia do Estudante, revistas... na época a empresa em que eu trabalhava assinava a Folha, não sempre..., toda quinta-feira tinha a “Folha Vestibular” que eu dava uma folheada. Então eu fui assim procurando justamente aquela imprensa especializada. (Wago)

Ler periódicos parecia ser uma constante entre eles. Embora o acesso a eles fosse defasado, pois compravam revistas de segunda mão e por um preço mais em conta, apresentam-se como espaços de divulgação de idéias e notícias que os ajudaram em muitas das questões nas
quais se viam, mas que não recebiam respostas por parte da família e/ ou da escola.

As revistas apareciam... tinha uns irmãos mais velhos, por parte de pai, eles traziam coisas da rua, revistas, essas coisas, e eu também acabava absorvendo isso aí. Eu lembro da revista Placar, que era de futebol, e meu irmão costumava trazer muito Jornal da Tarde, aí, passei... li muito Jornal da Tarde por essa influência... ele também gostava de música, mas música internacional, então acabei tendo influência, procurando saber o que o cara queria dizer com a música, aí... já é um estímulo maior para você aprender... este negócio do inglês... da música começou ali, nos compactos simples do meu irmão. (Israel)
Isso eu não me lembro, eu lembro de ter pesquisado coisas semelhantes em manuais, eu não me lembro se era o Manual da FUVEST, eu acho que era.(Magy)


Por fim as mídias áudio e visuais. Embora a presença da TV e do rádio seja lembrada com freqüência nos depoimentos de todos, os usos que fazem desses veículos são bastante heterogêneos. Para os objetivos deste artigo, cumpre lembrar que esses meios de informação podem ser altamente educativos pois cumprem a função de transmitir um conteúdo que é apropriado diferentemente pelos sujeitos, a partir de interesses e problemas particulares. Ou seja, nos depoimentos coletados observei que ora servem como mediadores de um saber difuso e pré-científico, ora como sistematizadores de conhecimentos escolares.

Eu sempre vi a minha mãe tendo a cabeça no lugar, não deixando meu pai gastar mais do que podia e minha mãe assim vendo programa na televisão, de médicos, então a única coisa que às vezes a gente fala, saber o nome das doenças, o que causa, o que não causa... muita coisa... ela ouve muito rádio... então eu sinto que, por mais que ela tenha parado de estudar na quarta série, o que ela sabe, a bagagem que ela tem, que ela buscou, ela aprendeu de escutar uma coisa, e de já aprender e guardar, e já querer saber mais... eu admiro muito a minha mãe, um monte de coisa a gente quer saber... como ela sabe? Porque ela ouviu no rádio ou na TV o médico falando, ou ela leu em algum lugar, ela ouviu e prestou atenção. (Deby)
Comecei a fazer o cursinho da Poli aqui, e ela (a irmã) já... mas eu lembro que na época que ela fez vestibular ela estudava, ela assistia àquele programa “Vestibulando”, que passava na Cultura, ela ficava anotando tudo direitinho e ela não teve a oportunidade que eu tive, ela não fez cursinho, meu pai não podia pagar cursinho para ela... (Breno)
Não, não. A leitura na família é algo que não é muito. Os meus pais não lêem... periódicos... o meu pai ele adora informativos, mas de TV.


Neste sentido, o que se observa é uma familiaridade com bens da indústria da cultura, um contato freqüente com produtos “desclassificados” do ponto de vista escolar (Bourdieu, 1979), encontrados nas bancas de jornal e não os comercializados em templos da cultura como as livrarias. Seja em perguntas relativas ao lazer,

Vai depender da época, mas eu sempre gostei de esporte, gibi, desde a infância, cinema, filmes de ação em geral... sempre a gente tem influência dos jornais, da TV da época. (Otávio)
Jogava um pouco de bola... mas eu ia no cinema também, costuma ir com os amigos... (Israel)


seja em questões relativas aos modelos de conduta que fogem do universo paterno e escolar,

Acho que veio dessa influência do... meus irmãos também depois ficaram assim rebeldes, não queriam dar dinheiro, queriam morar sozinhos, então eu prestava atenção nisso... né? Tinha um outro lado que não era só aquela orientação familiar, tinha um outro mundo... uma outra coisa, eu lia jornais, as revistas, a TV também fazia eu questionar, certo, acho que este questionamento vem daí. (Israel)
Acho que é uma ambição mesmo, eu nunca gostei de ser pobre, de ter pouco dinheiro e eu sabia que se eu continuasse lá eu não conseguiria sair do lugar. Tudo o que você vê na TV, nas revistas, nos livros, esses best-sellers, todos têm uma fórmula muito comum, assim, rico e bem-sucedido, só ele consegue tudo. Acho que isso me marcou, eu era muito jovem quando comecei a ler isso, tinha uns 15 anos e às vezes, até hoje, isso me incomoda... se eles conseguiram isso, por que eu não posso conseguir? Eu também posso conseguir isso. (Duda)


bem como nas questões que versam sobre aspectos da vida cotidiana da família,

Nós conversamos muito em casa, sabe, sobre as coisas do mundo, e ver TV, mas falando, e eu sou a primeira a falar, às vezes a gente está vendo a novela, eu estou dando palpite, sabe, é uma coisa que eu acho que eu fui adquirindo de ouvir dos meus pais, minha mãe que fala muito, que tem opinião própria, e sempre em casa teve conversas, discussão. (Deby)
Eu sempre li muito, sempre procuro ler, leio jornal, assisto também TV junto com elas. Quando assistimos um programa que tem alguma coisa que eu acho que não é certo, a gente comenta. (Mãe da Deby)


a forte presença das mídias, como provedora de informações e com potencial de produzir um novo capital cultural, chama a atenção. Ora substituindo a escola, ora entretendo, mas exercendo um papel educativo, as mídias parecem, de fato, desempenhar um papel importante na trajetória acadêmica desses alunos, sobretudo se aliada às estratégias pedagógicas tradicionais explicitadas no início da argumentação.


Considerações finais

O objetivo deste artigo foi refletir sobre as estratégias pedagógicas que potencializaram trajetórias de sucesso acadêmico entre alunos provenientes de segmentos com baixa escolaridade. Teve a intenção de apontar a complexa rede de fatores relativos ao sucesso escolar de um grupo de estudantes brasileiros. Atenta para as variadas formas de se relacionar com os bens da cultura, de transmiti-los e de se apropriar deles, ressaltei a particularidade de uma nova forma de aquisição cultural específica das formações contemporâneas. Entre os estudantes pesquisados, observei a existência de uma valorização com relação ao aprendizado escolar, mas também uma abertura para outras experiências de conhecimento e vida cultural, colocada à disposição pela virtualidade da informação na modernidade.
Dialogando com as contribuições de Lahire, propus compreender o sucesso acadêmico de alguns indivíduos segundo a articulação de um feixe de condicionamentos socioculturais. Além de fatores relacionados à esfera familiar e escolar, considerei a hipótese de que o estudante brasileiro investigado se socializa a partir da interdependência de sistemas híbridos construídos pelas instâncias família e escola, mas também por um sistema difuso de informações veiculado pela cultura das mídias.
Em outras palavras, nesta reflexão salientei que uma pré-disposição a práticas pedagógicas familiares, aliada ao acesso a um conhecimento geral e midiático, pôde colocar à disposição, para alguns indivíduos – na falta ou na complementação de uma bagagem estruturada e oferecida oficialmente pelas instituições competentes –, a utilização dessas informações como um recurso distintivo.
O importante, neste sentido, foi revelar que existem diferenças de várias ordens, principalmente de acesso aos bens da cultura, entre as famílias, que são responsáveis pela variação no aproveitamento escolar. Isto é, a posse de um capital cultural midiático, associado às estratégias pedagógicas de natureza diversa, é uma forma de expressar um ethos familiar predisposto a valorizar e incentivar o conhecimento formal e informal, importantes elementos para se alcançar um sucesso escolar. Em outras palavras, destaquei uma nova ordem de estratégias e/ou práticas culturais que demonstraram uma abertura perante o aprendizado difundido por instituições ainda não consagradas como legítimas. Como bem afirma Lahire, ter ou não ter acesso aos bens da cultura escolar ou informal não nos fala sobre as possibilidades de transmissão, não nos ajuda a compreender as condições que efetivamente propiciam a apropriação de disposições culturais. É preciso, pois, observar várias situações em que algo se transmite, ou melhor, se constrói, sem nenhuma intenção pedagógica.
Posto isto, chamei atenção para a capacidade de os bens culturais provenientes das mídias potencializarem, em continuidade ou em ruptura, disposições com relação ao aprendizado, adquiridas previamente no ambiente familiar e escolar. E, conseqüentemente, acabei por problematizar os usos da cultura de massa, contrariando pesquisas (Postman, 1999; Khel, 1995, 2000) que generalizam os efeitos das mídias como sendo responsáveis pelos males culturais do mundo moderno.
Considero que ampliar a abordagem sobre as formas de se relacionar com os saberes culturais difusos corrobora pensar os usos da cultura, reflete sobre as formas de vivenciar e se orientar ante uma nova forma de circularidade da informação. Contribui e esclarece parte das experiências vividas pelos estudantes investigados, ao permitir pensar uma trajetória acadêmica e social sendo construída pela mediação de uma cultura constituída fora do espaço escolar, que está pulverizada, mas, no entanto, presente e que pode servir como recurso e/ou capital.
Neste sentido, esta abertura para experiências e informações externas e difusas pode também predispor a uma atitude mais reflexiva, mais interpretativa sobre a vida e sobre os saberes. Tal como a cultura escrita, que predispõe os indivíduos a uma prática, a uma ação com crítica, a expressiva difusão da informação pode também, conjuntamente, oferecer uma possibilidade de reação reflexiva e interpretativa entre os sujeitos (Lahire, 1997; Giddens, 1991; Benjamin, 1983). Abrindo espaço para o contato com outras vivências e competências, a circulação de mensagens propiciada pelas mídias pode estimular o aprendizado de novos saberes, contribuindo para a aquisição de uma outra forma de capital cultural. Recurso não mais visto segundo a conceituação tradicional de Bourdieu (1979, 1998). Uma herança específica e objetivada em diplomas e práticas culturais legitimadas, mas um conhecimento, um capital não-escolar, um recurso mais amplo, pulverizado, heterogêneo, não obstante um recurso que predispõe e potencializa o indivíduo a enfrentar novos desafios e vencer os limites de uma experiência estreita relativa a um universo familiar e escolar. É possível assim pensar um capital cultural com outra significação, um capital cultural dos desfavorecidos apreendido informalmente em heterogêneas experiências, em vários espaços do convívio social, notadamente no contato com informações colocadas à disposição pelos meios de comunicação de massa.

SETTON, M.G. J.
Um Novo Capital Cultural: Pré-disposições e Disposições à Cultura Informal nos Segmentos com Baixa Escolaridade. Revista Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 90, p. 77-105, Jan./Abr. 2005.



* Devido aos moldes de formatação do blog, as notas tiveram que ser suprimidas do texto. Apesar disso, não poderia deixar de postar este artigo, uma vez que foi de grande valia até mesmo ao refletir sobre a construção do próprio blog. mas, as notas são riquíssimas. Para ler o artigo na íntegra, acessar www.cedes.unicamp.br.



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