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terça-feira, 1 de março de 2011

O gosto ou senso estético como princípio de classificação para Pierre Bourdieu

Para Bourdieu, os agentes sociais tanto se aproximam como se afastam entre si por meio do que ele denomina disposições*, ou seja, um conjunto de regras (quase sempre inconscientes) que definem todo tipo de gosto e comportamento, assim como sua visão de mundo. São estas disposições que guiam o ser, o estar e o agir no mundo. Mas tais disposições são tão arraigadas em nosso corpo que se apresentam como uma segunda natureza, e os indivíduos não percebem que essas disposições são de ordem cultural.

Portanto, não há nada que distinga tão rigorosamente as diferentes classes quanto à disposição objetivamente exigida pelo consumo legítimo das obras legítimas, a aptidão para adotar um ponto de vista propriamente estético a respeito de objetos já constituídos esteticamente – portanto, designados para a admiração daqueles que aprenderam a reconhecer os signos do admirável – e, o que é ainda mais raro, a capacidade para constituir esteticamente objetos quaisquer ou, até mesmo, “vulgares” (por terem sido apropriados, esteticamente ou não, pelo “vulgar”) ou aplicar princípios de uma estética “pura” nas escolhas mais comuns da existência comum, por exemplo, em matéria de cardápio, vestuário ou decoração da casa. (BOURDIEU, 2008, p.42)


Segundo Bourdieu, o gosto – ou o senso estético – é um dos responsáveis pela distinção das classes no espaço social. Desse modo, a disposição estética, por meio da expressão distintiva, une e separa as pessoas em grupos sociais. Une as pessoas em relação a condicionamentos de uma classe particular por condições de existência. E separa, distinguindo-se de todos os outros que não compartilham as mesmas condições, uma vez que o gosto é o princípio de tudo que se tem, que se é, tanto para classificar como para ser classificado (BOURDIEU, 2008).

Assim, o gosto é uma prática que carrega a diferença como algo inevitável. É uma prática que distingue as classes. Isso se torna plausível se pensarmos na aversão existente entre os diferentes estilos de vida, que acabam se tornando barreiras entre alguns grupos sociais, ou até mesmo a tentativa de homogeneização entre diferentes culturas em uma mesma sociedade, como ocorreu no Brasil em consequência da modernização, oposição e até mesmo inferiorização da cultura rural diante do modo de vida urbano.

A “ideologia urbana”, além de contrapor a diferença entre os modos de vida, classificava e desvalorizava a cultura rural como retrocesso e atraso ao país. Segundo Martins (1975, p. 4),

A contrapartida, a redefinição cultural ligada à constituição de uma sociedade centrada nos valores urbanos, levou rapidamente à distinção valorativa, também, entre o rural e o urbano. A afirmação da existência urbana, ainda que anômica, exprimiu-se culturalmente na construção de estereótipos, alguns negativos, do homem rural. A figura do caipira tem reafirmadas e atualizadas, nessa fase, as suas conotações fundamentais: ingênuo, preguiçoso, desnutrido, doente, maltrapilho, rústico, desambicioso, etc.

Ainda no que concerne ao gosto, Bourdieu revela que o gosto “puro” por objetos de arte são definidos pela percepção da forma e não da sua função. E ainda, a apreensão e apreciação da obra dependem também da intenção do espectador a qual por sua vez, é função das normas convencionais que regulam a relação com a obra de arte em determinada situação histórica e social; e, ao mesmo tempo, da aptidão do espectador para conformar-se a essas normas, portanto de sua formação artística. (2008, p. 33). Em outras palavras, a ideal percepção “pura” das obras de arte é resultado dos padrões que regem e legitimam o próprio campo artístico.

Desse modo, o gosto “puro” que advém da estética dominante se opõe ao gosto “bárbaro” que é nutrido pela estética popular. Isso porque, a estética popular pressupõe preceitos não aceitáveis pela estética dominante como: a participação individual do espectador, a apreensão confusa ao que se refere às formas nas obras de arte, aquisição de satisfações diretas e imediatas, ingenuidade dos espectadores (identificação com personagens, seus sofrimentos e alegrias etc), o reconhecimento apenas da representação realista e submissa dos objetos por sua beleza ou importância.
Mas, o fator de maior relevância que, acaba por culminar nos preceitos expostos acima, está na relação entre forma/função, prazer/desinteresse. A partir de uma estética antikantiana que distingue o “que agrada” e o que “dá prazer”, o autor pontua que a estética dominante é aquela que não pode ter como intenção o interesse em descobrir as funcionalidades dos objetos de arte e nem propiciar sensações, ou seja, está baseado no desinteresse, pois este é o único fator que garante a qualidade estética da contemplação.
A disposição estética leva em consideração apenas o modo de representação, o estilo percebido e apreciado pela comparação a outros estilos. (2008, p.54). Portanto, há normas de produção dentro da classe estética dominante que segue referências estéticas de outras produções já feitas durante outros períodos históricos, principalmente no que tange às formas das obras de arte. Os próprios artistas, que são submetidos quanto a escolha dos objetos criam maneiras de adquirir certo diferencial quanto à forma, cor ou perspectiva, mas sempre dentro de um certo padrão exigido no interior do campo artístico. Portanto, é factível pressupor que as qualidades reconhecidas dentro da estética dominante são produtos de um sistema de classificação dentro do próprio campo.
Sendo assim, a estética dominante tem como pressuposto a arte desinteressada, ou seja, é necessário que haja uma significação que transcenda ao objeto, como uma forma de autonomizar o objeto da imagem e vice-versa. Nesse sentido, somente os membros da classe dominante, que identificam o objeto representado, conseguem ter autonomia sobre o julgamento do objeto sobre a forma em relação ao seu conteúdo. (2008, p.48).
A arte, dentro da estética dominante, não pode ser objeto de interesse, por isso pressupõe-se que seja necessário haver um distanciamento do mundo, da experiência mundana, pois quanto maior for a distância objetiva da necessidade, maior a “estilização da vida” (termo weberiano). O mesmo ocorre com o poder econômico, que tem de ser colocado à distância da necessidade econômica – com gastos ostentatórios, desperdício, luxo gratuito (2008, p.55) para que seja uma prática de vida distinta de outras classes.
Mas o privilégio em relação a “estilização da vida” é reservado à burguesia (classe dominante e aos artistas). Às classes dominadas cabe ser o ponto de referência negativo no jogo da disposição estética. Desse modo, “as artes de viver dominadas (...) são quase sempre percebidas, por seus próprios defensores, do ponto de vista destruidor ou redutor da estética dominante.” (2008, p.49). As classes médias também recusam seus objetos favoritos e de seus grupos mais próximos no espaço social como forma de distinção e procura adquirir formas no estilo de vida que represente os grupos privilegiados, já que são estas representações que tem mais valor na sociedade.

* Segundo Bourdieu, disposições são um conjunto de regras, incorporadas de maneira inconsciente pelas pessoas (por isso são naturalizadas), que perpassam pelos setores éticos, estéticos, cognitivos e físicos. Exemplo são as disposições linguísticas, sexuais, religiosas, estéticas que carrega a nossa visão de mundo e o nosso posicionamento nele. As disposições produzem a nossa identidade e são adquiridas por meio de experiências e também em instituições sociais, como a família e a escola.

BOURDIEU, P. Introdução e Capítulo I. In: _________. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2008.

MARTINS, J. S. Capitalismo e Tradicionalismo: estudos sobre as contradições da sociedade agrária no Brasil. São Paulo: Pioneira: 1975.

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