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quarta-feira, 27 de abril de 2011

O poder dos meios de comunicação

Lendo um livro de crônicas de Machado de Assis me deparei com o seguinte: " [...] a palavra sempre foi uma reforma. Falada na tribuna é prodigiosa, é criadora, mas é o monólogo; escrita no livro, é ainda criadora, é ainda prodigiosa, mas é ainda o monólogo; esculpida no jornal, é prodigiosa e criadora, mas não é o monólogo, é a discussão." Isso me fez lembrar que novamente encaminhei um texto ao Jornal de Piracicaba para ser publicado na seção "Leitor" e outra vez não o vi anunciado. Na época em que Machado de Assis escreveu a citação acima talvez o jornal fosse realmente o único meio de propagação de ideias a um número considerável de pessoas, já que ainda não havia o poder da TV e internet como propagadora de informações. Eu ainda acho que o Jornal é uma boa maneira de veicular opiniões e formar discussões acerca de diversas temáticas sociais. O problema é que como a TV, a mídia impressa fica em posse de um número reduzido de indivíduos que veiculam somente aquilo que lhes interessam e que sob uma máscara democrática nos apresentam somente uma versão dos fatos. Contudo, restou-me uma maneira de tornar pública minhas palavras, pelo meio do que talvez hoje seja o mais democrático destes aqui citados, a internet. Posto o texto aqui como uma forma de além de não deixar as palavras no "monólogo" como disse Machado de Assis, mas também para salientar que não estamos mais em fins de 1800 e por isso, há outras brechas que permitem que não fiquemos mais calados. Por fim, deixo um alerta sobre o papel dos meios de comunicação que são grande influência para formar opiniões e que nem sempre são tão democráticos como aparentam. Ainda fico com o principio de que vivemos em uma falsa democracia...

O texto se refere a uma devolutiva de uma carta publicada na seção Leitor do Jornal no dia 20/04 no qual o autor enaltece o prefeito do municipio por tantas obras realizadas, inclusive uma que está sendo feita no centro da cidade. Ainda ressaltou que desse modo, conseguimos saber para onde vai o dinheiro público e que isso nada mais faz que mudar a "cara" da cidade, pois a torna mais bonita e atraente.

CarasXCaras

A carta ao leitor intitulada “Verdade” e postada no dia 20/04 veio a calhar, pois há dias atrás houve um debate sobre esta mesma questão entre amigos meus em uma das redes sociais de maior uso atualmente no país, o Facebook. Só que ao invés de parabenizarmos tantas obras realizadas durante a atual gestão política piracicabana, o consenso foi o seguinte: para que tantas obras, construções que na grande maioria das vezes não havia necessidade alguma em ser mexida? Segundo o autor da publicação “mudou a cara da cidade” e acredito que tais obras servem mesmo para isso. Para que os habitantes possam olhar as obras e se convencerem de que algo está sendo feito para a população. Aí eu me pergunto: nesse mesmo dia saiu uma matéria no Jornal sobre um senhor de 64 anos que aguarda em um pronto-socorro vaga para internação em um hospital. Acredito que, se há tanta arrecadação e tanto recurso para tanto investimento em obras, porque não utilizar para melhorar realmente a vida dos piracicabanos? Não há quem não reclame da situação da saúde pública em Piracicaba, exceto aqueles que não necessitam. Penso também que antes de melhorar a “cara” da cidade, deveríamos melhorar a cara das pessoas, investir mais nos seres humanos diretamente; recursos que eles necessitam de fato, sua saúde, sua educação, sua cultura... Ninguém irá morrer se andar um pouco apertado nas ruas centrais de nosso comércio, mas há pessoas que estão correndo sérios riscos de vida todos os dias nos pronto-socorros de nossa cidade! Isso sim é uma verdade!


terça-feira, 19 de abril de 2011

Escolhas...

Tempo de pensar...

Refletir sobre escolhas...

Mas aí começo a pensar sobre escolhas...

Grande parte das vezes elas não dependem somente do querer...

Mas do poder também...

Ninguém cai no mundo em um determinado espaço social por escolha...

As escolhas acontecem durante o percurso do nosso caminhar...

Do nosso viver...

Mas são escolhas limitadas...

Limitam-se a partir do que conhecemos...


Um dia me disseram que felizes eram aqueles que menos sabem das coisas...

Pois estes não ficam a perder tempo pensando sobre as misérias do mundo...

E não se entristecem...

Simplesmente vivem...

Sábio foi o Mário Quintana que disse...

“Sentir primeiro, pensar depois”...

Sigo essa linha de pensamento...

Ajo, como num impulso...

Falo, sob o mesmo impulso...

Apenas o que sinto...


Escolhas!

Não sei se por escolhas...

Ainda não pensei sobre isso...

Assim como a impulsão...

Meus sentimentos são momentâneos...

Meus interesses são momentâneos...

Meus prazeres são momentâneos...

Minhas paixões são momentâneas...

Já que a vida é feita de momentos...

Melhor vivê-la...

Depois pensamos em escolhas...

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Cultura na escola - Pablo Picasso

"O Toureiro" - Pablo Picasso (1889)






Proposta de atividade feita por mim aos alunos de uma escola piracicabana no ano de 2009. O objetivo era o trabalho com Pablo Picasso (havia a exigência em apresentar um artista plástico estrangeiro no semestre) e para a introdução do autor lemos uma biografia de Picasso em que dizia que sua primeira obra, ainda criança, era uma intitulada "O Toureiro", uma vez que o artista ia muito às touradas com seu pai durante sua infância. Conversamos sobre a Espanha e a cultura das touradas e também foram mostradas algumas imagens sobre a temática. Em outro momento, a partir de todas as discussões feitas, sugeri que desenhassem as suas representações sobre as touradas e o resultado foi este:








































terça-feira, 12 de abril de 2011

Conto de escola - Machado de Assis

A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia - uma segunda-feira, do mês de maio - deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de São Diogo e o Campo de Sant'Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão.

Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes.

Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinqüenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.

- Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.

Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinqüenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.

- O que é que você quer?

- Logo, respondeu ele com voz trêmula.

Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os outros foram acabando; não tive remédio senão acabar também, entregar a escrita, e voltar para o meu lugar.

Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.

- Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.

- Não diga isso, murmurou ele.

Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria pedir-me alguma coisa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo, e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.

- Seu Pilar... – murmurou ele daí a alguns minutos.

- Que é?

- Você...

- Você quê?

Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma coisa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais velho que nós.

Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem de mim. Ou então, de tarde...

- De tarde não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.

- Então agora...

- Papai está olhando.

Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as idéias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.

No fim de algum tempo - dez ou doze minutos - Raimundo meteu a mão no bolso das calças e olhou para mim.

- Sabe o que tenho aqui?

- Não.

- Uma pratinha que mamãe me deu.

- Hoje?

- Não, no outro dia, quando fiz anos...

- Pratinha de verdade?

- De verdade.

Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei, cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me lembro; mas era uma moeda, e tal moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava caçoando, mas ele jurou que não.

- Mas então você fica sem ela?

- Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?

Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a pratinha nos joelhos...

Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma idéia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada.

Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a coisa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes, mas parece que era lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, - e pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, - parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor, - mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...

Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz.

- Ande, tome, dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele não podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indignação...

- Tome, tome...

Relancei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas daí a pouco deitei-lhe outra vez o olho, e - tanto se ilude a vontade! - não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.

- Dê cá...

Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.

De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.

- Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.

- Diga-me isto só, murmurou ele.

Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.

- Oh! seu Pilar! - bradou o mestre com voz de trovão.

Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.

- Venha cá! - bradou o mestre.

Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.

- Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? - disse-me o Policarpo.

- Eu...

- Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! - clamou.

Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então disse-nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória.

- Perdão, seu mestre... - solucei eu.

- Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!

- Mas, seu mestre...

- Olhe que é pior!

Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma coisa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem-vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio apanharíamos tal castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões! tratantes! faltos de brio!

Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo como três e dois serem cinco.

Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou a cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava com medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?

- Tu me pagas! Tão duro como osso! - dizia eu comigo.

Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar ali mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na Rua larga São Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.

Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando ao diabo os dois meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...

De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua...

Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma coisa: Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...

O jogo social, a produção da crença e a illusio

BOURDIEU, P. Meditações Pascalianas 2.ed. Trad. Sérgio Miceli. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p. 114-129.


A VIOLÊNCIA E A LEI

''O costume faz toda a equidade pela única razão de que algo é recebido; é o fundamento místico de sua autoridade. Quem o reconduz ao seu principio, aniquila-o. Nada e tão falível quanto essas leis que reparam as faltas; quem lhes presta obediência, porque são justas, obedece a justiça que imagina, mas não a essência da lei, que está inteiramente contida em si mesma; a lei e a lei, e nada mais. Quem quiser examinar o motivo disso acabara se defrontando com algo tão frágil e tão leve que, se não estiver acostumado a contemplar os prodígios da imaginação humana, ficara admirado como em apenas um século tenha adquirido tanta pompa e reverência. A arte de agredir e subverter os Estados consiste em abalar os costumes estabelecidos, sondando inclusive em seus alicerces, no intuito de assinalar sua falta de autoridade e de justiça (...). Não convém que ele (o povo) sinta a verdade da usurpação; ela foi introduzida antigamente sem razão, depois tornou-se razoável; é preciso fazer com que seja vista como sendo autêntica, eterna, e ocultar seu começo se quisermos que não acabe logo.”

Assim, o único fundamento possível da lei deve ser buscado na história, a qual, precisamente, aniquila todo tipo de fundamento. No principio da lei, não existe outra coisa senão o arbitrário (no duplo sentido), a "verdade da usurpação”: a violência sem justificativa. A amnésia da gênese, que nasce do fato de se estar acostumado ao costume, dissimula o que está enunciado pela brutal tautologia: "a lei é a lei, e nada rnais". Quem quiser "examinar seu motivo", sua razão de ser, levando tal indagação "até a sua fonte primeira”, ou seja, fundá-la remontando ao começo primordial, a maneira dos filósofos, descobrirá sempre essa espécie de principio de desrazão suficiente.

Na origem, existe apenas o costume, ou seja, o arbitrário histórico da instituição histórica que procura se fazer esquecer como tal ao tentar erigir-se em razão mítica, com as teorias do contrato, verdadeiros mitos de origem das religiões democráticas (as quais,

recentemente, ganharam seu verniz de racionalidade com a Teoria da justiça de John Rawls), ou então, de maneira mais banal, naturalizando-se e obtendo assim um reconhecimento enraizado no desconhecimento: "O que são nossos princípios naturais senão nossos princípios costumeiros? (...)." Logo, nesses assuntos, nada parece mais inútil do que a ambição da razão que pretende fundar-se em si mesma, procedendo por dedução rigorosa a partir de "princípios": "(...) Os fi1ósofos sempre tiveram a pretensão de se sair bem nisso e foi justamente ai que todos tropeçaram. É o que deu origem a esses títulos tão comuns, Dos princípios das coisas, Dos principias da filosofia, bem como aos congêneres, tão pomposos na verdade, embora nem tanto na aparência, como esse outro que fura os olhos, De omni scibili.”

Salta a vista, Pascal está pensando em Descartes. Entretanto, ao estabelecer uma divisão estrita entre a ordem do conhecimento e a ordem da política, entre a escolástica "contemplação da verdade" (contemplatio veritatis) e "o uso da vida" (usus vitae), o autor dos Princípios da filosofia, de resto bem intrépido, reconhece que a dúvida não se sustenta fora do primeiro domínio à maneira de todos os sectários modernos do ceticismo, desde Montaigne até Hume, ele sempre se absteve, para grande espanto de seus comentadores, de estender a política - sabe-se com que prudência ele se refere a Maquiavel- o modo de pensamento radical que havia inaugurado na ordem do saber. Talvez porque pressentisse que estaria condenado, conforme as previsões de Pascal, a essa última descoberta, talhada para liquidar a ambição de querer fundar tudo na razão, de que "a verdade da usurpação': "outrora introduzida sem razão, se tornou razoável".

Mas a força do costume jamais anula completamente o arbitrário da força, alicerce de todo o sistema, que sempre ameaça revelar-se em pleno dia. Assim, pelo mero fato de existir, a polícia traz a lembrança a violência extralegal sobre a qual repousa a ordem legal (e que a filosofia do direito, Kelsen em especial, com sua teoria da "lei fundamental", pretende ocultar). Embora de modo mais insidioso, o mesmo ocorre com rupturas críticas no curso sem história da "ordem das sucessões" que os golpes de Estado introduzem, ações extremadas de violência extra-ordinária que rompem o ciclo da reprodução do poder, ou, de maneira mais trivial, momentos inaugurais em que um agente socialmente destinado ao exercício legítimo da violência física ou simbólica (rei, ministro,magistrado, professor etc.) é investido (de um novo mandato). Com o golpe de Estado, quer seja entendido no sentido clássico (lembrado por Louis Marin ao comentar Naudé) de ação excepcional a que recorre um governante para garantir o que ele concebe como a salvação do Estado, quer no sentido moderno, mais restrito, de empreitada violenta pela qual um indivíduo, ou um grupe, se apropria do poder ou muda a Constituição, são a violência e o arbitrário da origem e, ao mesmo tempo, a questão da justificação do poder que ressurgem no "tumulto, na violência, no choque da força absoluta”, como também diz Louis Marin; e a ruptura com o exercício "legítimo" do poder como representação da força capaz de se fazer reconhecer pelo simples fato de se fazer conhecer, de se mostrar sem se exercer. A exibição da força, na parada militar, mas também no cerimonial judiciário - tal como se mostra na analise de E. P. Thompson -, implica de fato uma exibição do domínio da força, mantida assim no estatuto de força

em potencial, que poderia servir mas da qual evita-se lançar mão: mostrá-la equivaleria a mostrar que ela é bastante forte e ciosa de seus efeitos para poder fazer a economia da passagem ao ato. E1a é uma denegação (no sentido verdadeiro de Verneinung) da força, uma afirmação da força que não deixa de ser uma negação da força, o mesmo que define uma força de polícia policiada, capaz de se esquecer e de se fazer esquecer enquanto força, logo convertida em força legitima, desconhecida e reconhecida, em violência simbólica. (À maneira do golpe de Estado, as "violências policiais" suscitam o escândalo talvez porque ameacem a crença prática que constitui a "força pública" em força reconhecida como legítima por ser capaz de se exercer- sobretudo sem chegar a se exercer de fato - em favor daqueles mesmos que sofrem sua ação.)

O NOMOS E A ILLUSIO

O arbitrário situa-se no principio de todos os campos, até dos mais "puros", como os mundos artístico ou cientifico: cada um deles possui sua "lei fundamental”: seu nomos (palavra que se traduz em geral por "lei" e que seria preferível verter por "constituição”: que lembra melhor o ato de instituição arbitrária, ou por "princípio de visão e de divisão", mais colado à etimologia). Não há nada a dizer a respeito dessa lei a não ser, como dizia Pascal, que "a lei e a lei, e nada mais". Ela só se enuncia, quando acontece que o faça, a titulo excepcional, sob a forma de tautologias. Irredutível e incomensurável a qualquer outra, ela nunca pode ser referida a lei de um outro campo ou ao regime de verdade aí implicado: isso se mostra particularmente visível no caso do campo artístico, cujo nomos tal como se afirmou na segunda metade do século XIX ("a arte pela arte") e o inverso do que se passa no campo econômico ("negócios são negócios"). Como observa Bachelard, verifica-se incompatibilidade semelhante entre o "espírito jurídico" e o "espírito cientifico”, a recusa de qualquer aproximação, a vontade de abolir a qualquer preço o incerto, gerador de litígios, podendo levar por exemplo o jurista a avaliar o preço de um terreno em mais ou menos um franco. O que é absurdo do ponto de vista do erudito.

Tendo-se aceitado o ponto de vista constitutivo de um campo, torna-se completamente inviável assumir a seu respeito um ponto de vista externo: por jamais ter sido postulada desse modo, tal "tese" não pode ser contestada, e o nomos não tem antítese; princípio legitimo de divisão aplicável a todos os aspectos fundamentais da existência, definindo o pensável e o impensável, o prescrito e o proscrito, ele acaba permanecendo impensado; matriz de todas as questões pertinentes, ele é incapaz de produzir as questões aptas a questioná-lo.

Como a ordem pascaliana, cada campo confina assim os agentes a seus próprios móveis de interesse os quais, a partir de um outro ponto de vista, ou seja, do ponto de vista de um outro jogo, tornam-se invisíveis ou pelo menos insignificantes ou até ilusórios: "Todo brilho das grandezas não possui nenhum lustre para as pessoas envolvidas em pesquisas do espírito. A grandeza dessas pessoas e invisível aos reis, aos ricos, aos comandantes, a todos esses maiorais de carne e osso. A grandeza da sabedoria (...) é invisível aos carnais e as pessoas de espírito. São três ordens diferentes de gênero." Com vistas a verificar as proposições pascalianas, basta observar onde deixam de ser perceptíveis e atrativos os móveis e os ganhos propostos por cada um dos diferentes campos (eis uma das maneiras de testar seus limites): por exemplo, as

ambições de carreira do"alto funcionário podem deixar a pesquisador indiferente, e as investimentos a fundo perdido do artista ou a luta dos jornalistas para ter acesso a primeira pagina permanecem quase ininteligíveis para a banqueiro (os desentendimentos dos artistas e escritores com um pai burguês não constituem apenas um mero topos da hagiografia), bem como, sem dúvida, para todas as pessoas estranhas ao campo, isto e, com freqüência, para os observadores superficiais.

DIGRESSÃO, O SENSO COMUM

Ora, o mundo do senso comum faz por merecer esse nome: é o único lugar verdadeiramente comum em que podem se encontrar, por exceção, e achar, como se diz, terrenos de acordo, aqueles que aí estão reclusos, na impossibilidade de terem acesso a disposição escolástica e as conquistas históricas dos mundos eruditos, bem como todos os que participam de a1gum dos universos escolásticos (e a quem ele oferece por outro lado o único referente e a única linguagem comuns para falar entre si do que se passa no

interior de cada um desses universos fechados acerca de sua idiossincrasia e seu idioleto). O senso comum é um fundo de evidências partilhadas por todos que garante, nos limites de um universo social, um consenso primordial sobre o sentido do mundo, um conjunto de lugares comuns (em sentido amplo), tacitamente aceitos, que tornam possíveis o confronto, o diálogo, a concorrência, ate mesmo o conflito, e entre as quais cumpre dar um lugar à parte aos princípios de c1assificação, tais como as grandes oposições que estruturam a percepção do mundo.

Tais esquemas c1assificatórios (estruturas estruturantes) são essencialmente o produto da incorporação de estruturas das distribuições fundamentais que organizam a ordem social (estruturas estruturadas). Sendo por conseguinte comuns ao conjunto dos

agentes inseridos nessa ordem, eles viabilizam o acordo em meio ao desacordo de agentes situados em posições opostas (altas/baixas, visíveis/obscuras, raras/comuns, ricas/pobres etc.) e caracterizadas por propriedades distintivas, elas mesmas diferentes ou opostas no espaço social. Em outras palavras, são eles que fazem com que todos possam se referir as mesmas oposições (por exemplo, alto/baixo, elevado/baixo, raro/comum, leve/pesado, rico/pobre etc.) para pensar o mundo e sua posição neste mundo, por vezes atribuindo signos e valores opostos aos termos com que elas se opõem, a mesma liberdade de maneiras podendo então ser percebida por uns como "sem medida”, deseducada, grosseira, e por outros como "sem modos", simples, sem frescura, numa boa.

O senso comum e em grande parte nacional porque quase todos os grandes princípios de divisão têm sido ate agora inculcados ou reforçados pelas instituições escolares cuja missão máxima consiste em construir a nação como população dotada das mesmas "categorias”, logo do mesmo senso comum. O profundo desconforto que se pode sentir num pais estrangeiro, e que não se consegue superar de todo pelo domínio da língua, deriva em ampla medida dos inumeráveis pequenos descompassos entre o mundo tal como se apresenta a cada momenta e o sistema de disposições e expectativas constitutivas do senso comum. A existência de campos transnacionais (sobretudo científicos) cria sensos comuns específicos que questionam o senso comum nacional e favorece a emergência de uma visão escolástica do mundo (ou quase isso) comum a todos os scholars de todos os países.

PONTOS DE VISTA INSTITUÍDOS

O processo de diferenciação do mundo social conducente à existência de campos autônomos concerne, ao mesmo tempo, ao ser e ao conhecer: ao se diferenciar, o mundo social produz a diferença dos modos de conhecimento do mundo: a cada um dos campos corresponde um ponto de vista fundamental sobre o mundo que cria o seu próprio objeto e encontra nele mesmo o princípio de compreensão e, explicação conveniente a esse objeto é dizer, ta1 como Saussure, que "o ponto de vista cria o objeto" é dizer que uma mesma “realidade" se torna objeto de uma pluralidade de representações socialmente reconhecidas, mas parcialmente irredutíveis umas as outras - como os pontos de vista socialmente instituídos nos campos de que elas são o produto-,

ainda que tenham em comum a pretensão à universalidade. (Pelo fato de que cada campo como "forma de vida" e o lugar de um "jogo de linguagem" que dá acesso a aspectos diferentes da realidade, poder-se-ia indagar sobre a existência de uma racionalidade geral, transcendente as diferenças regionais e, por mais intensa que possa ser a nostalgia da reunificação, sem dúvida é preciso renunciar, à maneira de Wittgenstein, a buscar algo assemelhado a uma linguagem de todas as linguagens.)

O princípio de visão e de divisão e o modo de conhecimento (religioso, filosófico, jurídico, cientifico, artistico etc.) corrente num campo, em associação com uma forma específica de expressão, só podem ser conhecidos e compreendidos em relação com a legalidade especifica desse campo como microcosmo social. Por exemplo, o "jogo de linguagem" denominado filosófico só pode ser descrito e explicado em sua relação com o campo filosófico como "forma de vida" no interior do qual ele ocorre. As estruturas de pensamento do filósofo, do escritor, do artista ou do erudito, bem como os limites do que se lhes impõe como pensável ou impensável, são sempre dependentes, em certa medida, das estruturas de seu campo, portanto da história das posições constitutivas desse campo e das disposições nele favorecidas. O inconsciente epistêmico é a história do campo. Para se ter alguma chance de saber falar propriamente do que se faz, é preciso tentar extrair o que está inscrito nas diferentes relações de implicação nas quais o pensador e seu pensamento se encontram enredados, ou seja, os

pressupostos por ele mobilizados bem como as inclusões e exclusões que ele opera sem o saber.

Cada campo é a institucionalização de um ponto de vista nas coisas e nos habitus. O habitus específico, imposto aos novos postulantes como um direito de entrada, não é outra coisa senão um modo de pensamento específico (um eidos), princípio de uma construção especifica da realidade, fundado numa crença pré-reflexiva no valor indiscutível dos instrumentos de construção e dos objetos assim construídos (um ethos). (Na realidade, em lugar do habitus tácita ou explicitamente exigido, o novo postulante deve trazer para o jogo um habitus praticamente compatível, ou suficientemente próximo, e acima de tudo maleável e suscetível de ser convertido em habitus ajustado, em suma congruente e dócil, ou seja, aberto a possibilidade de uma reestruturação. É a razão pela qual as operações de cooptação prestam atenção aos sinais de competência e ainda mais aos indícios quase imperceptíveis, quase sempre corporais, postura, compostura, maneiras, disposições de ser e sobretudo de vir a ser, quer se trate de escolher um jogador de rugbi, um professor, um alto funcionário ou um policial.)

Para dar apenas um exemplo, a disposição estética, tacitamente exigida pelo campo artístico (e por seus produtos), inculcada por suas estruturas e seu funcionamento, tendente a apreender as obras de arte como elas aspiram a sê-lo, ou seja, esteticamente, enquanto obras de arte (e não como simples coisas do mundo), é inseparável de uma competência específica: funcionando como um princípio de pertinência, tal disposição leva a discernir e a tratar como distintos traços ignorados ou tratados como idênticos por outros princípios de construção e também a captar propriedades comuns em realidades diferentes, e portanto a declarar como equivalentes as real idades caracterizadas por tais propriedades, estabelecendo então classes de equivalência mais ou menos rigorosamente definidas, como os estilos (gótico, rococó), as escolas (impressionistas, simbolistas) ou as maneiras de um artista. (Tal descrição também se aplicaria ao habitus religioso, jornalístico, medico, pugilístico, científico: em A Estrutura das revoluções científicas, Kuhn fala em disciplinary matrix, "constelação de crenças, valores, técnicas etc., partilhada por uma comunidade".)

Como o campo artístico, cada universo erudito possui sua doxa específica, conjunto de pressupostos inseparavelmente cognitivos e avaliativos cuja aceitação é inerente à própria pertinência. Paradoxalmente, as grandes oposições taxativas acabam unindo os mesmos que se opõem através delas, visto que é preciso concordar em admiti-las para que se esteja apto a contrapor-se a seu propósito, ou, valendo-se de sua mediação, de produzir então tomadas de posição imediatamente reconhecidas como pertinentes e sensatas mesmo por parte daqueles aos quais elas se opõem e que por sua vez se lhes opõem. Esses pares de oposições específicas (epistemológicas, artísticas etc.), que são também pares de oposições sociais entre adversários cúmplices no interior do campo, delimitam, inclusive em política, o espaço legítimo de discussão, excluindo como absurdo, eclético ou simplesmente impensável, qualquer tentativa de produzir uma posição não prevista (quer se trate da intrusão absurda ou deslocada do "ingênuo”, do "amador" ou do autodidata, ou da grande inovação subversiva do heresiarca, religioso, artístico ou mesmo científico). Os autores das grandes revoluções simbólicas subvertem ou aniquilam as oposições mais fundamentais e as mais profundamente arraigadas, como no caso de Manet, ao revogar as oposições canônicas da pintura acadêmica, entre antigo e contemporâneo,"esboço" e "acabamento”.

As oposições consagradas acabam parecendo inscritas na natureza das coisas, ainda mais quando um exame crítico rudimentar, sobretudo se estiver munido do conhecimento do campo (construído como tal), obriga muitas vezes a descobrir que cada uma das posições opostas não possui nenhum conteúdo fora da relação com a posição antagonista da qual ela não é outra coisa senão a inversão racionalizada. É o caso, c1amoroso, de inúmeros pares de oposições hoje vigentes nas ciências sociais, indivíduo e sociedade, consenso e conflito, consentimento e coerção, ou então, entre os anglo-saxões, "structure and agency” e, de maneira ainda mais evidente, divisões em "escolas", "movimentos” ou "correntes”, "estruturalismo" e "construtivismo", modernismo" e "pós-modernismo”, tantos rótulos com aparências de conceitos cuja margem de autonomia se comparada as oposições entre posições sociais é idêntica àquela de que desfrutam divisões do mesmo gênero correntes no campo literário ou artístico (como por exemplo, no campo literário do fim do século XIX, a oposição entre o naturalismo e o simbolismo).

A disposição constituinte - arbitrária, ou até deslocada e risível do ponto de vista de um outro campo, e ao mesmo tempo necessária, portanto imperativamente exigida (sob pena de parecer grosseria, ridículo etc.), do ponto de vista da legalidade específica do campo considerado - e essa adesão tácita ao nomos, essa forma particular de crença, a illusio, exigida pelos campos escolásticos e que supõe a suspensão dos objetivos da existência ordinária, em favor de novos móveis de interesse, suscitados e produzidos pelo próprio jogo. Conforme demonstra o escândalo suscitado por qualquer questionamento das evidências fundantes, essa crença primordial encontra-se bem mais profundamente arraigada, mais "visceral" e, por conta disso, muito mais difícil de desentranhar do que as crenças explícitas e explicitamente professadas no campo (religioso, por exemplo).

As filosofias da sabedoria tendem a reduzir todas as espécies de illusio, mesmo as mais "puras”, como a libido sciendi, a meras ilusões, das quais é preciso livrar-se para que se possa ter acesso à liberdade espiritual perante quaisquer móveis mundanos proporcionados pela suspensão de todas as formas de investimento. É o mesmo que faz Pascal quando condena como "divertimento" as formas de "concupiscência" associadas as ordens inferiores, da carne ou do espírito, pelo fato de terem o efeito de desviar da única crença verdadeira, aquela que se engendra na ordem da caridade.

A illusio como pronta adesão à necessidade de um campo tem chances tanto maiores de aflorar à consciência quando ela é posta de a1gum modo a salvo da discussão: a título de crença fundamental no valor dos móveis da discussão e nos pressupostos inscritos no próprio fato de discutir, ela constitui a condição indiscutida da discussão. Para se lançar à discussão dos argumentos, e precise acreditar que desmerecem ser discutidos e, de algum modo, acreditar nos méritos da discussão. Em lugar de se inserir na ordem dos princípios explícitos, das teses formuladas e defendidas, a illusio faz parte da ação, da rotina, das coisas que se faz e que se faz porque se fazem e na verdade sempre se fez assim. Todos aqueles engajados no campo, defensores da ortodoxia ou da hetorodoxia, partilham a adesão tácita à.mesma doxa que torna possível a concorrência entre eles e lhes impõe o seu limite (o herético continua sendo um crente que prega o retorno as formas mais puras de fé): ela impede de fato o questionamento dos princípios da crença, que ameaçaria a própria existência do campo. Os participantes não têm nada a responder quanto às questões sobre as razões da pertinência, do engajamento visceral no jogo, e os princípios que podem ser invocados nesse caso não passam de racionalizações post festum destinadas a justificar, tanto para si como para os outros, um investimento injustificável.

DIGRESSÃO, DIFERENCIAÇÃO AO DE PODERES E CIRCUITOS DE LEGITIMAÇÃO

Na medida em que se constituem campos relativamente autônomos, afastamo-nos da indiferenciação política e da solidariedade mecânica entre poderes intercambiáveis (como os antigos das unidades de um clã ou os notáveis das sociedades interioranas), ou de uma divisão do trabalho de dominação reduzida a um número restrito de funções especializadas, quiçá a um par de poderes antagônicos, como os guerreiros, bellatores, e os sacerdotes, oratores. Deixando de se encarnar em pessoas ou instituições especializadas, o poder se diferencia e se dispersa (ao que parece, era isso que Michel Foucault pretendia sugerir com a metáfora um tanto vaga da "capilaridade", decerto contra a visão marxista do aparelho centralizado e monolítico): ele só se realiza e se manifesta por meio de todo um conjunto de campos unidos por uma verdadeira solidariedade orgânica, ao mesmo tempo diferentes e interdependentes. Mais precisamente, ele se exerce, de maneira invisível e anônima, através das ações e reações, a primeira vista anárquicas, mas de fato estruturalmente coagidas, de agentes e instituições inseridos em campos concorrentes e complementares, como, por exemplo, o campo econômico e o campo escolar, e envolvidos em circuitos legitimadores de trocas cada vez mais distendidos e mais complexos, por conseguinte ainda mais eficazes simbolicamente, dando cada vez mais lugar, ao menos potencialmente, aos conflitos de poder e de autoridade.

Uma forma de separação dos poderes, bem diferente daquela preconizada por Montesquieu, esta inscrita nos fatos sob a forma de diferenciação dos microcosmos e dos conflitos atuais ou potenciais entre os poderes separados dai resultantes. De um lado, os poderes exercidos nos diferentes campos (sobretudo aqueles em que esta em jogo uma espécie particular de capital cultural, como o campo medico ou o campo jurídico) podem decerto ser opressivos sob certos aspectos, e na ordem que lhes é própria, logo prontos a suscitar resistências legitimas, dispondo, no entanto, de autonomia relativa perante os poderes políticos e econômicos, e oferecendo ainda a possibilidade de uma liberdade em relação a eles. De outro lado, se e verdade que os ocupantes de posições dominantes nos diferentes campos estejam unidos por uma solidariedade objetiva fundada na homologia entre tais posições, eles também se opõem, no interior do campo do poder, por relações de concorrência e de conflito, sobretudo a respeito do principio de dominação dominante e da "taxa de cambio" entre as diferentes espécies de capital que fundamentam as diferentes espécies de poder. Em conseqüência, os dominados podem sempre tirar proveito ou partido dos conflitos entre os poderosos que, com freqüência, tem necessidade de sua ajuda para triunfar. Inúmeros enfrentamentos históricos considerados momentos exemplares da "luta de classes" constituíram apenas a extensão, na 1ógica das alianças com os dominados, de lutas entre dominantes no interior do campo do poder - embora munidas de estratégias de universalização simbólica dos interesses particulares para fins de legitimação ou de mobilização, tais lutas podem não obstante fazer avançar o universal e, por conta disso, o reconhecimento, ao menos formal, dos interesses dos dominados. Os progressos na diferenciação dos poderes são outras tantas proteções contra a imposição de uma hierarquia única e unilinear, fundada na concentração de todos os poderes em mãos de uma só pessoa (como no cesareo-papismo) ou de um só grupo e, de modo mais geral, contra a tirania entendida como intrusão dos poderes associados a um campo no funcionamento de um outro campo: "A tirania consiste no desejo de dominação universal e fora de sua ordem. (...) A tirania e querer ter por uma via o que só se pode ter por outra. Presta-se diferentes homenagens aos diferentes méritos: homenagem de amor ao consentimento, homenagem de temor à força, homenagem de crédito a ciência." Há tirania, por exemplo, quando o poder político ou o poder econômico intervém no campo científico ou no campo literário, quer diretamente, quer mediante um poder mais especifico, como aquele exercido pelas academias, editores, comissões, ou pelo jornalismo (que tende cada vez mais a exercer hoje seu domínio sobre os diferentes campos, político, intelectual, jurídico e cientifico), impondo-lhes suas hierarquias e buscando reprimir nelas a afirmação dos princípios específicos de hierarquização.

Com vistas a absolutizar um dos princípios de visão e de divisão e a constituí-lo então como fundamento último e insuperável de todos os demais, as ambições tirânicas constituem, paradoxalmente, reivindicações de legitimidade, por vezes inconseqüentes. Assim, a força não pode se afirmar como tal, como violência sem rodeios, arbitraria, que e o que ela e, sem justificação; e é um fato inconteste que e1a s6 consegue se perpetuar sob as roupagens do direito, fazendo com que a dominação somente consiga se impor de maneira duráve1 na medida em que logra obter o reconhecimento, que não e outra coisa senão o desconhecimento do arbitrário de seu princípio. Dito de outro modo, ela quer ser justificada (logo reconhecida, respeitada, honrada, considerada), embora só tenha alguma chance de sê-lo contanto que renuncie a se exercer (todo emprego da força no intuito de obter seu reconhecimento acaba logrando um reforço, simbolicamente autodestrutivo, do arbítrio). Por conseguinte, poderes fundados na força (física ou econômica) só podem derivar sua legitimação de poderes insuspeitos de obedecer a força, a eficácia legitimadora de um ato de reconhecimento (homenagem, sinal de deferência, manifestação de apreço) varia em função da independência, maior ou menor, daquele que a dispensa, agente ou instituição, em relação àquele que a recebe (e também do reconhecimento do qual ele próprio se sente credor). £ quase nula no caso da autoconsagração (Napoleão tomando a coroa das mãos do papa a fim de coroar a si mesmo) ou da autocelebração (um escritor que faça seu próprio panegírico); é frágil quando os atos de reconhecimento são executados por mercenários (uma claque no teatro, publicitários, propagandistas), cúmplices ou até pessoas próximas ou familiares, cujos juízos são suspeitos de terem sido impostos por uma forma de complacência egoísta ou de cegueira afetiva, e quando esses atos entram em circuitos de trocas destinados a serem tanto mais transparentes quanto mais diretos e mais enxutos, como o intervalo temporal que os separa (por exemplo, as citações e remissões recíprocas de que se valem por vezes os autores de resenhas). No extremo oposto, o efeito de legitimação atinge seu máximo quando desaparece toda relação real ou visível de interesse material ou simbólico entre as instituições ou os agentes envolvidos, sendo o proprio autor do ato de reconhecimento ainda mais reconhecido.

Assim, e preciso despender força para fazer ignorar e reconhecer a força e produzir essa força justificada que é o direito. A eficácia simbólica do trabalho de legitimação esta estreitamente ligada ao grau de diferenciação desse trabalho, por conseguinte ao risco de desvio daí resultante. O príncipe só consegue obter de seus poetas, pintores e juristas um serviço simbólico de legitimação verdadeiramente eficaz na medida em que lhes concede autonomia (relativa), condição de um juízo independente, mas que também pode constituir o principio de um questionamento critico. De fato, embora uma autonomia aparente ou uma dependência desconhecida possa lograr efeitos idênticos aos de uma independência real, a eficácia simbólica, condicionada a certa independência da instância legitimadora em re1ação à instância legitimada, tem como contrapartida quase inevitável um risco proporcional de que essa instância desvie em proveito próprio seu poder delegado de legitimação. Por isso mesmo, desde o surgimento de um corpo de juristas profissionais, na Bolonha do século XII, começou a se manifestar a ambigüidade da relação entre o poder temporal e o poder cultural (como ocorria, em outros tempos, entre bellatores e oratores): a autonomização do campo jurídico garante ao príncipe, como mostrou Kantorowicz, poderes de uma nova espécie, e mais legítimos, fundados na autoridade conquistada e afirmada pelo corpo jurídico contra ele, mas ela também constitui o princípio das reivindicações que os juristas lhe contrapõem e das lutas de poder em meio as quais os detentores do monopólio da manipulação legitimada dos textos podem invocar a autoridade especifica do direito contra o arbítrio do poder principesco.

Da mesma maneira, as artes e a literatura podem decerto oferecer aos dominantes instrumentos de legitimação muito poderosos, quer diretamente, por meio da celebração que eles outorgam, quer indiretamente, sobretudo por conta do culto de que se fazem objeto e que também consagra seus celebrantes; todavia, também pode acontecer que os artistas e os escritores estejam, direta ou indiretamente, na origem de revoluções simbó1icas de grande alcance (tais como, no século XIX, o estilo de vida do artista, ou hoje, as provocações subversivas dos movimentos feminista ou homossexual), capazes de transtornar as estruturas mais profundas da ordem social, como as estruturas familiares, por meio da transformação dos princípios fundamentais de divisão da visão do mundo (como a oposição masculino/feminino) e do questionamento correlato das evidências do senso comum.

À medida que o campo do poder se diferencia e que, concomitantemente, os circuitos legitimadores de trocas vão se tornando mais distendidos e mais complexos, o custo em energia social gasta com o trabalho de legitimação se amplia, assim como também se ampliam as ameaças de crise. O progresso em termos de eficácia simbó1ica correlato a uma complexidade crescente dos circuitos de legitimação e, sobretudo, por conta da intervenção de mecanismos tão complexos e dissimulados como os da instituição escolar, tem como contrapartida a expansão considerável das possibilidades de desvio subversivo do capital especifico associado a pertinência a quaisquer dos campos resultantes do processo de diferenciação (como, por exemplo, todos os fatores de transformação) ligados ao sistema de ensino, desde a insatisfação individual e coletiva engendrada sobretudo pela desclassificação estrutural decorrente da "desvalorização"dos títulos escolares e dos descompassos entre o titulo e o cargo até os grandes movimentos subversivos como o de maio de 1968).

Tendo competência (no duplo sentido) para falar do mundo e de por em forma (religiosa, jurídica etc.) experiências práticas e muitas vezes difíceis de exprimir (desconfortos, indignações, revoltas), e de operar uma certa universalização daquilo que enunciam pelo simples fato de torná-lo publico, conferindo-lhe assim uma forma de reconhecimento oficial e a aparência da razão e da razão de ser (como, por exemplo, a quase sistematização profética), os profissionais do discurso estão estruturalmente inclinados a um desvio fundado na absolutização de uma razão social entre outras (empresa tecnocrática, republica de magistrados, teocracia etc.).


Herói. Morto. Nós. (Lourenço Diaféria)

Tive conhecimento deste texto pelo meu tio. Um belo texto, que rendeu a Diaféria sua prisão durante a ditadura por utilizar frases como "O povo urina nos heróis de pedestal" ao retratar a estátua de Duque de Caxias. Disse o que pensava e não se calou, desafiou os militares ao publicar esta crônica na Folha de São Paulo em 01/09/1977.


Herói. Morto. Nós.

(Lourenço Diaféria)

Crônica publicada em 1/9/1977, na Folha de S.Paulo


Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Que nome devo dar a esse homem?

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto.

E todavia.

Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel -onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer- oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento -apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher- salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.

Esse sargento não é do grupo do cambalacho.

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.

É apenas um homem que -como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem- não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.

Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.

Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis -tarde demais.


quinta-feira, 7 de abril de 2011

Crônica: Anúncio de João Alves - Carlos Drummond de Andrade

Conversando com meu tio sobre crônicas e cronistas ele me disse que gostava muito de uma do Carlos Drummond de Andrade que discorria acerca do anúncio de um burro (depois descobrimos que era besta) em um jornal. Percorremos a internet para ver se achávamos, pois neste momento eu já estava curiosa para conhecer mais um dos escritos de Drummond. Depois da leitura, regada a muitas risadas conversamos um pouco e voltei pra casa ainda pensando na crônica. Pudera, o texto retrata - além do sumiço da besta - a linguagem utilizada pelo seu dono ao postar o anúncio no jornal. E é aí que reside toda a graciosidade textual, além da possibilidade de uma reflexão não somente sobre os usos funcionais da linguagem, mas também sobre as suas mais variadas manifestações.

Anúncio de João Alves

Figura o anúncio no jornal que o amigo me mandou, e está assim redigido:

À procura de uma besta

A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-escura com os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos os membros locomotores, um pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas seções em conseqüência de um golpe, cuja extensão pode alcançar de 4 a 6 milímetros, produzido por jumento.

Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio, é muito boa e mansa de sela, e tudo me induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas todas a indagações.

Quem, pois, apreendê-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notícia exata ministrar, será razoavelmente remunerado.

Itambé de Mato Dentro, 19 de novembro de 1899.

João Alves Júnior

55 anos depois, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, já é pó no pó. E tu mesmo, se não estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitério de Itambé. Mas teu anúncio continua modelo no gênero, se não para ser imitado, ao menos como objeto de admiração literária.

Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. Não escreveste apressada e toscamente, como seria de esperar de tua condição rural. Pressa, não a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e só a 19 de novembro recorreste à Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagações. Falharam. Formulaste depois o raciocínio: houve roubo. Só então pegaste da pena, e traçaste um belo e nítido retrato da besta.

Não disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste dizê-lo "de todos os seus membros locomotores". Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa divisão da crina em duas seções, que teu zelo naturalista e histórico atribuiu com segurança a um jumento.

Por ser "muito domiciliada nas cercanias deste comércio", isto é, do povoado e sua feirinha semanal, inferiste que não teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, não o afirmas em tom peremptório: "tudo me induz a esse cálculo". Revelas a prudência mineira, que não avança (ou avançava) aquilo que não seja a evidência mesma. É cálculo, raciocínio, operação mental e desapaixonada como qualquer outra, e não denúncia formal.

Finalmente - deixando de lado outras excelências de tua prosa útil - a declaração positiva: quem a apreender ou pelo menos "notícia exata ministrar", será "razoavelmente remunerado". Não prometes recompensa tentadora; não fazes praça de generosidade ou largueza; acenas com o razoável, com a justa medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues.

Já é muito tarde para sairmos à procura de tua besta, meu caro João Alves do Itambé; entretanto essa criação volta a existir porque soubeste descrevê-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal a guardou e alguém hoje a descobre, e muitos outros são informados da ocorrência. Se lesses os anúncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. Já não há essa precisão de termos e essa graça no dizer, nem essa moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo, esse amor à tarefa bem-feita, que se pode manifestar até mesmo num anúncio de besta sumida.


ANDRADE, Carlos Drummond de. In: Poesia completa e prosa.
Rio de Janeiro: Aguilar, 1973